quinta-feira, outubro 27, 2005

O Pobre Tolo

A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne e o Verbo. Entre nós, o Verbo não encarnou inteiramente. Somos corpo e alma, verbo encarnado e verbo não encarnado, a matéria e o limbo, o esqueleto de pedra e um fumo que o enconbre e ondula em volta dele, e dança aos ventos da loucura... E aí tendes um pobre tolo sentimental, uma caricatura elegíaca. Neste limbo interior, neste infinito espiritual, vive a lembrança de Deus que alimenta a nossa esperança, e transfigura esse bicho do Demónio, que anda por esses boulevards, vestido à moda ou coberto de farrapos.
Ardemos num incêndio de esperança, para que reste de nós uma lembrança, um fumo que sobe e não se apaga. Tudo é memória: um fumo leve, em mil visagens animadas; ou denso, em formas inertes e sombrias; e, ao longe, a grande fogueira invisível que os demónios e os anjos alimentam.

Vivo, porque espero. Lembro-me, logo existo.

Teixeira de Pascoaes, in "O Pobre Tolo"

quarta-feira, outubro 26, 2005


Milton Avery

Hipnos visita-me tarde, não morre de amores por mim. Enquanto aguardo ansiosamente pela sua chegada, já de madrugada, distraio-me com a leitura da bula do Victan e de uma antologia de Juan Luis Panero, que, diga-se de passagem, têm muita coisa em comum.

terça-feira, outubro 25, 2005

Cão




Cão passageiro, cão estrito
Cão rasteiro cor de luva amarela,
Apara lápis, fraldiqueiro,
Cão liquefeito, cão estafado
Cão de gravata pendente,
Cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
Cão ululante, cão coruscante,
Cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão ali, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o ossoessencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal de poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moido de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção,
cão pré fabricado,
cão espelho, cão cinzeiro, cão botija,
cão de olhos que afligem,
cão problema...
Sai depressa, ó cão, deste poema!

Alexandre O'Neill

sexta-feira, outubro 21, 2005

Colgate - Todo o meu Amor




Vi hoje o passarinho azul: apaixonei-me pela minha pasta de dentes Colgate Efeito Branqueador, enquanto tomava o meu duche matinal. Engoli sem querer um pouco de pasta e aliviou-me as minhas habituais dores de cabeça matinais. Ainda extasiado, percebi que posso moldar as suas formas e conseguir aquelas curvas que qualquer homem (ou mulher) deseja.

É perfeita, mas fica sequinha se não enrosco a tampinha.

quinta-feira, outubro 20, 2005

Construtores de labirintos

Tenho de estar completamente só quando penso,
E no parapeito mais alto
Debruçado sobre a rua vazia.
A janela poeirenta da loja lá em baixo
Está cheia de fantasmas ao pôr do sol.

Ali vai o meu velho. Já tem a idade que tenho agora.
De olhos fechados
chama as criadas pelos seus nomes secretos:
Sto. Isaac, o sírio,
Sto. Nilo, que escreveu sobre a oração.
O vinho das ambiguidades eternas,
Se faz favor, à saúde do corvo
Sentado no cimo de uma igreja branca.

A sua vida também é um emaranhado fantástico.
Os nossos infortúnios são empreiteiros.
Esquecem-se sempre das janelas,
Fazem os tectos baixos e pesados.
«É só uma lua de papel», cantam...
Mas estou a ir demasiado depressa.

No fim de um corredor escuro
Há um fósforo aceso numa mão trémula.
«Ainda tenho pavor do palco»,
Diz a bela mulher,
E depois guia-nos por entre guarda-roupas
Com espelhos e portas empenadas,
Onde estão pendurados vestidos sussurrantes,
Espartilhos sussurrantes, sapatos com botões -
Do tipo que se usaria para cavalgar uma cabra.

A sua filha, dizem-nos, está tísica.
Há uma marca do polegar oleoso da morte
na sua face angélica:
Ela quer que eu brinque debaixo da mesa
Dos jogadores de cartas silenciosos.

Brincamos e é como o palácio em Cnossos.
A memória, o único fósforo queimado do meu coração:
A sua mão guiando-me nas ruínas,
E as cartas sussurrando sobre as nossas cabeças
Que a nossa juventude e o nosso amor aturdiram.


Charles Simic
Trad. José Alberto Oliveira
Assírio & Alvim

quarta-feira, outubro 19, 2005

Allegro molto capriccioso


Cézanne

Uma dieta à base de pêssegos e piña colada (ok, eu cedo, com um pouco de licor do Faial para voar um bocadinho) ajudaria bastante a levantar a moral da população portuguesa.

P.S. (Post Scriptum, para que não haja confusões):
Este post não possui qualquer pretensão política.

segunda-feira, outubro 17, 2005

Presente

O Presente é-me oferecido de bandeja todos os dias, mas sinto que o subestimo. Nunca sei quando inicia ou termina, está sempre em curso, de forma contínua, e isso cria-me uma certa confusão. Não presto atenção suficiente, o agora passa-me ao lado e, portanto, torna-se automaticamente em Passado. Por outro lado, aborrece-me de morte fazer planos para o Futuro.

Bem, este post já era.

quarta-feira, outubro 12, 2005

Corridinho


Alphonse Mucha

O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

Adélia Prado, "Poesia Reunida", Siciliano - 1991, São Paulo

Sangue do meu sangue

Gosto de dar sangue.
É bom saber que a vaidade e o egoísmo que corre nas minhas veias vão ser vertidos para outros que precisam bem mais do que eu. Vejo pessoas demasiado boas à minha volta, é preciso haver mais egos distintos e arrebatados.
Além disso, tenho esta necessidade de me identificar com alguém que seja quase tão sanguíneo quanto eu.

terça-feira, outubro 11, 2005

Sol a Sol


Basquiat

(...)
Diz um: eu sou o sábio de domingo.
Agora não me ocupo de dias úteis, de remendos d'alma,
De fragilidades.
Esperem por mim mas só depois
Da missa.

Diz outro: a ética é grega de nascença
Movemo-nos por números, já sentenciava Pitágoras.
Não cunhamos moeda, não sujamos as mãos
Nos improvisados remos do naufrágio.
O nosso destino é perguntar.

Parece que deus quis que não nascesse a obra.
Nascer que nasça o sol
E é bastante.
Quem pergunta ao sonho pelo homem
De serviço? (...)

Armando Silva Carvalho

segunda-feira, outubro 10, 2005

The Big Lebowski

Se os irmãos Coen me tivessem dado a oportunidade para escolher um papel neste filme, seria um dos mecos do famoso salão de bowling onde quase tudo se decide.

Caso não fosse possível, gostaria de ser Jesus, dude.

quinta-feira, outubro 06, 2005

A Frente do Amor


Egon Schiele

Aquilo que aprendemos sobre o amor advém de romances, histórias e poemas. A par com a pobreza, frustação e horizontes cortados, começamos por apaixonamo-nos com uma tranquilidade terrível e caímos em sofrimento de uma forma muito mais fácil. No entanto, mantemo-nos fiéis à idéia de que o amor não vive nem existe para além dos livros.
As derrotas amorosas destruíram muitos de nós, levaram outros tantos à vadiagem e fez com que muitos outros desaparecessem. Apesar disso, aparecem, de quando em vez, alguns guerreiros; um jovem que, na maior parte dos casos, agita uma bandeira esfarrapada, ridiculariza o peso esmagador da realidade e a sua mó sangrenta. Parece ter a certeza que a sua angústia é mais valiosa que os automóveis Mercedes que assediam a sua pobre namorada e que os sentimentos verdadeiros são uma arma mortífera que decide a batalha.
Somos as vítimas incapacitadas desta guerra, sentimos as nossas cicatrizes, enquanto bebemos vinho barato com prostitutas anónimas em bares obscuros, lamentamos aquele jovem que surge dos subúrbios, cavalgando um poema de talento e avançando indefeso para a frente de batalha.

Abdel ilah Salhi
Trad. Pedro Amaral

quarta-feira, setembro 28, 2005

A visão enfraquecida


Michael Sweerts


A visão enfraquecida – meu poder,
Duas setas invisíveis de diamante;
A audição falha, cheia de trovoadas passadas
E de murmúrios da casa de meu pai;
Músculos endurecidos que se vergam
Como bois cinzentos arando o campo;
E à noite, por detrás de meus ombros
Não mais cintilam duas asas.

Sou uma vela consumida no festim.
Colhe minha cera ao alvorecer,
E esta página te contará um segredo:
Como chorar e onde ser orgulhoso,
Como distribuir o último terço
De prazer, e tornar fácil a morte,
E então, ao abrigo de um tecto qualquer,
Brilhar, como uma palavra, com luz póstuma.

Arsenii Tarkovski

segunda-feira, setembro 26, 2005

O dia já deu de si

O dia já deu de si,
e a noite entrou devagarinho, a medo.

Três indicadores luminosos
acenderam-se mesmo à minha frente:

Museu do Lego
Museu da Mulher
Museu da Luz

Apontavam os três
na mesma direcção.

Passei o vermelho,
virei no sentido oposto.

Chego a casa finalmente:

Esfrego então
(com as mãos limpas)
aquele unto de insónia
na cabeça.

Resulta, pois
acordo sempre nos meus braços
logo pela manhã.

terça-feira, setembro 20, 2005

Ai que estou perdido


Aldemir Martins

IX

Ai que estou perdido
num fundo de mato espantado mal-acabado

Me atolei num útero de lama
O ar perdeu o fôlego

Um cheiro choco se esparrama
Mexilhões estão de festa no atoleiro

Atrás de troncos encalhados
ouço guinchos de um guaxinim

Parece que vem alguém nesse escurão sem saída

- Olelé. Quem vem lá?
- Eu sou o Tatu-de-bunda-seca

-Ah compadre Tatu
que bom você vir aqui
Quero que você me ensine a sair desta goela podre

- Então se segura no meu rabo
que eu lhe puxo

(...)

"Cobra Norato", Raul Bopp

segunda-feira, setembro 19, 2005

A grande realidade


Georgia O'Keeffe

A grande realidade neutra do que eu estava vivendo me ultrapassava na sua extrema objectividade. Eu me sentia incapaz de ser tão real quanto a realidade que me estava alcançando – estaria eu começando em contorções a ser tão nuamente real quanto o que eu via? No entanto toda essa realidade eu a vivia com um sentimento de irrealidade da realidade. Estaria eu vivendo, não a verdade, mas o mito da verdade? Toda vez em que vivi a verdade foi através de uma impressão de sonho inelutável: o sonho inelutável é a minha verdade.
Estou tentando te dizer de como cheguei ao neutro e ao inexpressivo de mim. Não sei se estou entendendo o que falo, estou sentindo – e receio muito o sentir, pois sentir é apenas um dos estilos de ser. No entanto, atravessarei o mormaço estupefacto que se incha do nada, e terei que entender o neutro com o sentir.

“A Paixão Segundo G.H.”, Clarice Lispector
Relógio D’Água

sexta-feira, setembro 16, 2005

Cativo


Josef Liesler

Passar uma vida inteira com a permanente impressão que se entra pela porta das traseiras das coisas, encostado à parede de pés nus, frios, seguir a própria sombra e descobrir anões nos bolsos em vez de moedas para um café. Só por uma vez, ter a coragem, a souplesse de entrar pela porta de frente das coisas, exibir botas lustradas e um lenço vermelho, e ser galanteado por belas señoritas de leques e mantillas.
Enrolem lá essa passadeira vermelha - está um tamanho acima.

quarta-feira, setembro 14, 2005

Invento o Mundo


Invento o mundo, segunda edição,
segunda edição corrigida,
no riso, para os idiotas,
no choro, para os melancólicos,
nos pentes, para os carecas,
nos sapatos, para os cães.

(…)

O Tempo (capítulo II)
tem direito a intrometer-se
em tudo, seja no bom ou no mau.
E contudo, o que corrói as montanhas
e afasta os mares e usa
estar presente no giro das estrelas,
não há-de ter o mais pequeno poder
sobre os amantes,
porque nus de mais,
porque abraçados de mais, o espírito
eriçado como pássaro num ombro.

A velhice é só moral
em vida de criminoso.
Por isso todos são jovens!
Sofrer (capítulo III)
não tira o peso ao corpo
e a morte
virá enquanto dormires.

E sonhares
que afinal nem é preciso respirar,
que o silêncio sem respiração
é boa música,
és pequeno, uma faúlha,
e se te tocam apagas-te.

Morte, só uma assim. Dor maior
experimentaste ao segurares uma rosa,
e terror maior sentiste
vendo a pétala no chão.

Mundo, só um assim. Viver,
só desta maneira. E morrer, como antes visto.
tudo o resto é como Bach
tocado em serra de circo.


Wislawa Szymborska, “Paisagem Com Grão de Areia”,
Trad. Júlio Sousa Gomes
Relógio D´Água

segunda-feira, setembro 12, 2005

Béla Bartók


Alfred Sisley

- Pára! Pisaste na minha poça! Tens de pagar o tributo.
Olhei em meu redor. Não vi ninguém. No entanto, a voz parecia vir de perto.
- Estou aqui, grandalhão. Aqui em baixo. Vais ter de me pagar tal como os outros!
Olhei para baixo e vi um sapo do tamanho da minha mão a falar para mim.
- Como te chamas? Não reparei na poça.
- Chamo-me Béla Bartók, coaxou. Todos sabem que as poças deste parque são minhas e toda a gente deve pagar-me a taxa para pisar nesta poça e noutras quantas.
Não respondi. Creio que ficámos cerca de cinco minutos a olhar um para o outro, sem dizer uma palavra.
- Toma. Tens troco?
- Não, mas fica assim: desconto-te da próxima vez que meteres a pata na poça.
- Ok, obrigado.
- Adeus.

quinta-feira, setembro 08, 2005

O macaco nu


Rob Elliot

Existem actualmente cento e noventa e três espécies de macacos e símios. Cento e noventa e duas delas têm o corpo coberto de pêlos. A única excepção é um símio pelado que a si próprio se cognominou Homo sapiens. Esta insólita e próspera espécie passa grande parte do tempo a examinar as suas mais elevadas motivações, enquanto se aplica diligentemente a ignorar as motivações fundamentais. O bicho-homem orgulha-se de possuir o maior cérebro dentre todos os primatas, mas tenta esconder que tem igualmente o maior pênis, preferindo atribuir erradamente tal honra ao poderoso gorila. Trata-se de um símio com enormes qualidades vocais, agudo sentido de exploração e grande tendência a procriar, e já é mais do que tempo de examinarmos o seu comportamento básico.

"O macaco nu", Desmond Morris

quarta-feira, setembro 07, 2005

A Paixão Segundo G.H.




Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade, meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade inflamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus primeiros contactos com as verdades sempre me difamaram.

Clarice Lispector, “A Paixão Segundo G.H.”

sexta-feira, setembro 02, 2005

Dom da palavra


Mark Rothko


Quando se trabalha todos os dias com a palavra, dá-se um fenómeno curioso que passa algo despercebido à maioria daqueles que pensam que domesticaram este bicharoco. Invertem-se aqui os papéis: o agressor torna-se vítima e a vítima veste a pele do agressor. Se, por um lado, não será cientificamente correcto afirmar que se trata de uma doença, podem se manifestar, porém, certos sintomas cujo diagnóstico é reservado. Somos completamente formatados pela palavra e nem sequer nos damos conta. Senão vejamos: hoje, por exemplo, sinto-me algo itálico, inclinado a citar algo brillant, mas há dias em que um certo negrito se abate sobre mim, fico inchado e ninguém pode se aproximar do meu perímetro. Mas, é claro que as coisas nem sempre são assim tão textuais (!...) : por vezes, o meu estado de espírito é capaz de percorrer todas as cores de uma paleta e saltitar de parágrafo em parágrafo, misturando tudo e todos.

E é isto: .

quinta-feira, setembro 01, 2005

O Diabo Voyeur


Rob Elliot

O DIABO VOYEUR

Com as unhas presas na porta
se debate a alma de um sujeito.
Seus dedos inchados e o olho lúbrico e impotente
Guincham à sombra de um maldito divã.
Era um voyeur do inconsciente o pobre diabo.
Escutava com o olhar os prazeres secretos da carne.
Olhava descortês o tremor da voz nos amantes.
Apaixonava-se com a crosta do rancor
e a ameaça de matar a quem alguma vez quis.
Estava ali concupiscente o demônio entre as pernas,
metendo o nariz e o rabo onde não era chamado.
Na inconsciência, digo, porque o gênio se perde em desfigurações.
Há um diabo cativo na palavra.
Veste-se de anjo da guarda e responde pelo nome de Esperança
ou Caridade, não sei, parece Jocasta com a voz de Édipo,
ou então Tirésias espiando com seus olhos cegos.

José Ángel Leyva, trad. Floriano Martins

segunda-feira, agosto 29, 2005

Momento


Marc Chagall

Foi nesse momento, nesse preciso e fulgurante momento, em que o Ministro da Saúde do Uganda, Maj. Gen. Jim Muhwezi, foi mordido pelo mosquito Anopheles gambiae, em que Marie Deschamps de Neully sur Seine, Paris, soltou um longo e sentido gemido provocado pela sua prima carnal Gwendoline, violando assim o 3º mandamento da Lei de Deus ao invocar o nome do Santo Deus em vão, em que Lars Leijonborg de Gotemburgo partiu o bico de um lápis do IKEA, em que o famoso matador, "Juanito de Pura", desferiu a última estocada num belo miura na praça de touros de La Alpujarra, Espanha, foi, nesse momento, que deveria ter tirado a mordaça do meu subconsciente, ter ouvido pacientemente o que ele tinha para me dizer para, em seguida, esmurrá-lo mesmo no meio dos dentes.

Fui um momento lento demais.

quinta-feira, agosto 25, 2005

Peripatetismo - Parte II

O fresco do altar apresentava já as marcas indeléveis do tempo, mas não deixava de ser uma obra de qualidade mediana, possuíndo pormenores bastante singulares que fizeram despertar a minha atenção. Subi então os degraus, contornei o altar e aproximei-me do quadro.

Era dominado por uma babelesca, imponente torre de marfim, em forma de chifre, que tinha como pano de fundo uma daquelas paisagens renascentistas, quase etéreas. A parede da torre estava incrustada com rubis e diamantes e havia uma espécie de friso dourado que a circundava, parecendo dividir a parte de cima do resto da torre. Ainda no "chifre", podia ver-se uma magnífica sacada onde surgia alguém que, pelas vestes brancas e pelo solidéu, parecia ser um papa. Estava a sorrir, enquanto abençoava a lua e o sol que retribuíam o sorriso de volta.

Este papa possuía umas longas tranças ruivas que caíam fartas até à base da torre. As criaturas de Bosch seriam consideradas normais quando comparadas com aquilo que observei de seguida: vários bispos ou cardeais, não sei bem, estavam a tentar trepar pelas tranças de sua santidade; não manifestavam qualquer sinal de esforço, subiam com as expressões inertes, absolutamente neutras. Os pontos negros na tela pareciam ser corvos que esvoaçavam em seu redor.

Uma multidão uniforme de padres e monges concentrava-se como carneiros na praça da torre, agitando fervorosamente bíblias pelos ares, enquanto outros seguravam cruzes de madeira.

Dois monges gigantescos, completamente desproporcionais às restantes figuras, estavam representados curvados nas extremidades do estranho quadro: um deles estava a chorar copiosamente e afagava um lobo que lhe lambia a mão; o outro, o do lado esquerdo, tinha a fúria espelhada no rosto e estava a queimar com um archote uma pilha enorme de livros amarelecidos.

Mais uma nota do mesmo velho safado


Sidney Goodman

Simplesmente não existe muita mudança em lugar nenhum. A coisa em Praga escaldou um monte de gente que havia esquecido a Hungria. Eles passeiam pelos parques com o ídolo de Che, com fotografias de Castro em seus amuletos, fazendo OOOOOOOOMMMMMOOOOOOOMMM enquanto William Burroughs, Jean Genet e Allen Ginsberg os lideram. Esses escritores ficam delicados, malucos, uns cocozinhos, umas fêmeas - não homos mas fêmeas - e se eu fosse tira eu não hesitaria em lhes cacetear os seus cérebros confusos. Enforquem-me por isso. O escritor das ruas está tendo a sua alma chupada como um caralho pelos imbecis. Existe apenas um único lugar para se escrever e é SOZINHO numa máquina de escrever. Um escritor que tem que ir para as ruas é um escritor que não conhece as ruas. Eu já vi um número suficiente de oradores de fábricas, puteiros, prisões, bares e parques para os quais seriam necessários 100 homens e umas 100 vidas. Sair para as ruas quando você tem um NOME é fazer o caminho mais fácil - eles mataram Thomas e Behan com seu amor, seu uísque, sua idolatria, sua buceta e eles de certa forma assassinaram pelo menos a metade de uma centena de outros. QUANDO VOCÊ DEIXA SUA MÁQUINA DE ESCREVER VOCÊ DEIXA A SUA METRALHADORA E OS RATOS SURGEM AOS BORBOTÕES. Quando Camus começou a dar palestras perante as academias a sua escrita morreu. Camus não começou como palestrante, começou como escritor; não foi um acidente de automóvel que o matou.

"Notas de Um Velho Safado" (Ed. Brasileira), BUKOWSKI, Charles

segunda-feira, agosto 22, 2005

Shirley Ann Eagles


Jiri ANDERLE

Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo - mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas

e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais me reconforta;
e o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville - um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto

e oxigénio suficientes para arder.
O teu livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira - e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde

insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que eu? Não sei quem és
nem onde estás agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.


Rui Pires Cabral, "Longe da Aldeia"

sexta-feira, agosto 19, 2005

Peripatetismo - Parte I

Consegui arrastar-me até à casa de deus onde pude finalmente encontrar o alívio para o meu prolongado sofrimento. A canícula que se fazia sentir naquela tarde não me deixava respirar. Como é sabido, deus (através do homem, já se sabe), protege a sua casa com as suas mãos, em forma de concha, o que faz com que todas as igrejas, capelinhas e ermidas sejam lugares bastante aprazíveis no Verão, onde o ar é mais fresco, convidando assim a um recolhimento abnegado.
Sentei-me no último banco, limpei o suor da testa e descansei, mais aliviado. Porém, tive de me levantar logo de seguida, pois comecei a sentir umas picadas na zona lombar. Estes bancos de madeira não são propriamente ergonómicos, nem foram feitos para o ser, claro está.
À medida que deambulava pela nave central, comecei a contemplar a arte sacra. Perguntei a mim mesmo como é que poderia haver tantas nossas senhoras. Impressionou-me particularmente uma pintura de S. Sebastião trespassado por flechas. De súbito, um clarão de luz irrompeu diante de mim, deixei de ver e senti uma força tão grande sobre a minha cabeça e sobre os meus ombros que me fez prostrar diante do altar...

terça-feira, agosto 16, 2005

Embriaga-te


Mark Pilon

Deves andar sempre bêbado. É a única solução.
Para não sentires o tremendo fardo do tempo que te pesa sobre os ombros e te verga ao encontro da terra, deves embriagar-te sem cessar: com vinho, com poesia, ou com a virtude. Escolhe tu, mas embriaga-te.
E se alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre as verdes ervas de uma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez atenuada, pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que passou, a tudo o que murmura, a tudo o que canta, a tudo o que fala; pergunta-lhes que horas são: “São horas de embriagares. Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te, embriaga-te sem descanso.
Com vinho, com Poesia, ou com a virtude.

Charles Baudelaire

quarta-feira, agosto 10, 2005

Poema sobre o Amor


Mordecai Ardon


Hoje de manhã, ao acordar,
pensei:
hoje, o amor vai assaltar-te
embora não soubesse como ele é
nem o que vale.

Eu acho que as coisas realmente grandes na história
(tanto na história UNIVERSAL
como na história pessoal
mas talvez eu esteja errado)
de modo nenhum são feitas por amor
ou em amor ou qualquer coisa assim;
eu acho que as coisas realmente grandes
se fazem por razões completamente diferentes.
Por exemplo, a SIEMENS não constrói por amor
uma barragem em Cabora Bassa, e também
uma revolução do amor não
levará a nada.
Claro que se pode tentar
mas eu não acredito nisso.

E tentei
explicar isto à mulher-do-meu-amor
(que acordou logo a seguir a mim
talvez eu a tenha acordado
ao erguer-me para olhar para o despertador
passava pouco das onze e era sábado)
e ela disse
que não fazia SENTIDO
eu estar AGORA a explicar-lhe isto
e eu dei-lhe razão
e
ela
deitou a mão à minha piça. Depois
fizemos amor até ao meio-dia-e-meia
sem que daí
resultasse
nada de verdadeiramente grande
digamos: pelo menos com metade da grandeza
dos esforços de Leviné em Munique em 1919.

Jürgen Theobaldy
Trad. João Barrento

sexta-feira, agosto 05, 2005

A Caldeira

O acesso à Caldeira da ilha faz-se por um túnel estreito onde o vento sibilava continuamente. Pude finalmente apreciar a beleza avassaladora daquelas paragens que esmagaria os sentidos do viajante mais rodado e que parecia estar toda concentrada naquele sítio.

Aproximei-me devagar das margens da célebre Caldeira, sentei-me, inspirei fundo e deitei-me, entorpecido com tanta beleza. Deixei-me adormecer enquanto admirava o carrocel de nuvens no céu.

Devo ter dormido uma ou duas horas, acordei com uma valente dor de cabeça. O céu estava encoberto, mas quase se podia apalpar o calor húmido do ar.

Foi então que notei a presença de dois indíviduos que estavam a meu lado. Mais dois turistas, pensei eu. Reparei no estado andrajoso das roupas que traziam, a pele estava bastante queimada pelo sol, e ostentavam os dois grandes barbas desgrenhadas. Um deles olhou placidamente para mim e disse:
- Eu sou Saulo de Tarso. O meu amigo chama-se Mateus e é da Palestina, de uma pequena aldeia chamada Cafarnaum.
Apresentei-me, disse que este local era lindíssimo ou algo do género, quando, de súbito, Saulo levantou-se e exclamou, quase em estado de delírio:
- Meu jovem, o fim do mundo está próximo! Já o disse aos Coríntios e volto a dizê-lo: casa-te e evita o pecado mortal. A fornicação fora do casamento é altamente reprovável pelo Nosso Deus Todo Misericordioso. Abandona a vida pecaminosa que levas, irmão, e pratica o celibato até ao dia do teu matrimónio.
Mateus anuiu com a cabeça e acrescentou num tom de voz mais calmo, mas com uma segurança inabalável:
- Ainda que não pratiques adultério, meu irmão, a cobiça pela propriedade alheia - pela mulher do próximo - é condenável e profundamente desaconselhável.

Dito isto, pegaram nos respectivos cajados e começaram a descer a encosta verde em direcção à base da Caldeira, acenando-me enquanto se afastavam.

quarta-feira, agosto 03, 2005

Sena e a poesia


Wayne Thiebaud

A poesia não é essa alegria de fazer alguma coisa que nem todos os outros fazem, e que eles aliás desprezam. Não é também esse prazer enganoso de que possui com palavras o amor que lhe escapa, as coisas que não consegue, as ideias que perpassam pela sua cabeça, antes ou depois da solidão. A poesia, caríssimo, é a solidão mesma: não a que vivemos, não a que sofremos, não a que possamos imaginar, mas a solidão em si, vivendo-se à sua custa. Já pensou no que isso é (…) trairá tudo para ser fiel a si mesmo. Por ela, o senhor ficará completamente só. E, quando, de horror, penetrar lá onde supõe que o «si mesmo» está para lhe fazer companhia, verificará, em pânico, a que ponto ele não existe, ou já não existe, ou nunca existiu senão como uma miragem, ou existiu, sim, mas também o senhor o vendeu à poesia, a isso que não tem qualquer realidade senão como abstracção do que o senhor viveu ou não (…).
É isso o que pretende: ranger os dentes, mesmo postiços, pelo resto da vida ?
(…)
Sempre seu (que o manda para o inferno que é a nossa província).

Jorge de Sena, J.L., 1981
A IMPERFEIÇÃO DA FILOSOFIA, Maria Filomena Molder,
Relógio d’Água /col.Antropos, Lisboa 2003

quinta-feira, julho 28, 2005

Tarde


R.B. Kitaj

Tarde

Esta é uma tarde completa:
centenas de cacos de solidão
Eu conto
Eu comparo
Eu formo
Eu junto
Estas são as minhas mãos nuas
numa mesa nua e triste.
Tento manter este instante,
este fragmento de tempo, completamente dissecado.
Tenho os olhos arregalados.
Sinto o toque áspero e louco
da solidão.
Um sol branco, solitário e enlouquecido
está suspenso
no céu branco

Vasant Abaji Dahake
Trad. por Pedro Amaral

terça-feira, julho 26, 2005

Quartzo, Feldspato e Mica

O "Quartzo, Feldspato e Mica" encerrou a sua emissão há uma semana atrás.
Sinto-me na obrigação de afirmar aqui (com algum atraso, eu sei) que o "Micas" foi um dos pontos de partida que me levou a conceber este blog, "toca do lobo", o que queiram chamar. Foi um prazer ler os seus posts que foram autênticos balões de oxigénio para mim e lufadas de ar fresco na nossa blogosfera. Creio não falar apenas em meu nome.

Obrigado Rui.
Venham agora mais "dias felizes".

Whale watching

Descobri recentemente que os Portugueses não são grandes fãs nem de cetáceos nem de hortênsias. A julgar pelo tamanho das filas dos check-in para Las Palmas ou Tenerife no aeroporto de Lisboa, julgo que apreciam muito mais o convívio fraternal e pacífico das praias espanholas, bem como os famosos hóteis de cinco estrelas onde não faltam entertenimento a rodos e assistência "au pair".
Bem, mas é claro que a Inveja é uma coisa muito feia.

sexta-feira, julho 15, 2005

Imagem Recuperada


Schiele

Espetados os rosados mamilos, gotas de água
Deslizam nos teus peitos, pequenos
Na sombria racha do teu cu, que treme
Entre ondas clareadas pela luz das estrelas,
Num tíbio mar de fim de verão.
Agora, anos depois, essas mesmas gotas
Resvalam ainda pela pele suave do teu ventre,
O teu escondido umbigo,
O áspero e negro pêlo do teu sexo,
Frágeis e mínimas pegas de orvalho nos teus músculos.
Precária intimidade, face ao tempo acossado,
E de repente nos teus olhos, relâmpago na sombra,
A luz daquela noite, as tuas mães debatendo-se no ar,
Aquele galope branco da espuma chegando.

Juan Luís Panero, “Antes que chegue a Noite”
Versões de António Cabrita e Teresa Noronha
Fenda

O Meu Carácter


Almada Negreiros

Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. Não importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo.
Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por de mais inteligente.
Pelas minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam o alvor da minha vida, pela influência dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas tendências) - por tudo isto o meu carácter é do género interior, autocêntrico, mudo, não auto-suficiente mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do autodomínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito.

Fernando Pessoa, "Notas Autobiográficas e de Autognose"

quarta-feira, julho 13, 2005

O arauto

Sempre me fascinaram as pregas que se formam nas pontas dos dedos depois de um banho quente. As horas!14:45h. Enquanto me secava à pressa, ouvi aquilo que parecia ser um relinchar. Já estava acordado há mais de uma hora, por isso não podia estar a sonhar. O som parecia vir da minha banheira. Outra vez. Afastei o cortinado a medo e qual não foi o meu espanto ao ver um robusto garanhão a sorrir para mim, dentro da minha própria banheira.
Deixei cair o toalhão e fiquei petrificado a olhar para aquela criatura que não parava de mostrar a saudável dentadura. Possuía uma crina majestosa e tinha o pêlo castanho muito bem tratado.
Fechei o cortinado com alguma violência, apoiei-me sobre o lavatório e vi o meu olhar esgazeado no espelho baço, cheio de vapor.
Ainda não me tinha recomposto, quando ecoou uma trombeta por toda a casa. A porta da casa-de-banho abre-se atrás de mim e eis que irrompe a figura de um arauto vestido a preceito. Avançou, imperturbável, parou, subiu para cima da sanita e anuncia num tom solene e empolado que tem como missão arrancar a minha maçã de Adão e cortar os meus dedos para bem das gentes deste reino.
Vou chegar atrasado ao trabalho. Outra vez.

terça-feira, julho 12, 2005

Um Velho


Goya

No café no lugar de dentro na zoeira turva
senta-se um velho na mesa se curva;
com um jornal diante dele, sem companhia.

E no desdém da velhice miserável
pensa como usou tão pouco o tempo deleitável
em que força, e eloquência, e beleza possuía.

Sabe que envelheceu muito; sente-o, é visível.
E contudo o tempo em que era novo ao mesmo nível
do de ontem. Que espaço apressado, que espaço apressado.

E considera como burlava dele a Prudência;
e como nela tinha confiança sempre - que demência! -
a perjura que dizia: «Amanhã. O tempo é demorado».

Lembra-se de impulsos a que punha freio; e sem medida
a alegria que sacrificava. Cada história perdida
agora troça da sua desmiolada sageza.

. . . . Mas do muito que foi pensando e não esquece
o velho atordoou-se. E adormece
no café apoiado sobre a mesa.


Konstandinos Kavafis
POEMAS E PROSAS
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães
e Nikos Pratsinis
Relógio d´Água

sexta-feira, julho 08, 2005

Amor e favas contadas


Da Vinci

Não adianta muito adiar as coisas, sabes disso. As tuas roupas, os teus fatos italianos, todos os teus trastes sem serventia ainda estão lá em casa. É simplesmente infantil quereres prolongar aquilo que já anda moribundo há meses. Estamos a rogar por um tiro de misericórdia e ninguém tem tomates para o fazer. As tuas chamadas a meio da noite são demasiado más para serem verdade. Esqueceste que tenho de ganhar a vida e trabalhar no dia seguinte. Nunca me deste valor por aquilo que sou e por aquilo que consegui. Dizes que ganhas mais num mês do que todos os meus amigos juntos. Impinges a tua propaganda aos médicos e beija-lhes o cu, é o que é.
Que eu fique entrevada para o resto da minha vida: podes fazer uma rodinha no calendário, meu querido. Acabou-se.

Para a Margarida Rebelo Pinto, com amor...

quinta-feira, julho 07, 2005

O sonho do poema


Schiele

O sonho do poema

Por duas razões que resistem à especulação
O poema recolhe-se cedo
No corpo do poeta:
Ou o poeta se priva de sonhar
Ou o guerreiro
Decidiu descansar!
Apenas entre mãos sonhadoras o poema dorme na posição correcta!


Boujema El Aoufi
Trad. Pedro Amaral

terça-feira, julho 05, 2005

aprendi


David O'Connell

aprendi

aprendi (na igreja):
oferece também a outra face
a quem te bater na direita

aprendi (na instrução corpo-a-corpo):
um pontapé nos testículos do inimigo
é a forma mais segura de o derrubar

o que vale então?

Mateus 5. 38/39


Poemas à Margem, Kurt Marti
Tradução colectiva
Colecção «Dois Dedos de Leitura»
Apáginastantas

quinta-feira, junho 30, 2005

A raça dos escritores


George Grosz

A raça dos escritores tem um cheiro de pele nauseabundo e, para cozinhar, utiliza os métodos mais sórdidos. É uma raça nómada que pernoita sobre o próprio vómito, que é expulsa das cidades e perseguida nas aldeias, e por todo o lado se torna íntima do poder que lhe concede lugar nos bairros amarelos, como às prostitutas. Porque a literatura cumpre em toda a parte o mesmo desígnio: ajudar os chefes a manterem os soldados em obediência, e os juízes a justiçarem os condenados.
O escritor é um misto de papagaio e de padre. É papagaio no sentido mais elevado da palavra. Fala francês se o seu dono é francês, mas se for vendido para a Pérsia dirá em persa «o loiro é parvo» ou «o loiro quer açúcar». O papagaio não tem idade, não sabe distinguir o dia da noite. O dono, quando se aborrece, cobre-o com um lenço preto, o que constitui para a literatura uma imitação da noite.


"Guarda Minha Fala Para Sempre", Ossip Mandelstam
Trad. Nina Guerra/Filipe Guerra
Assírio & Alvim

quarta-feira, junho 29, 2005

Abat-jour


Basquiat

Vou comprar um abat-jour e adaptá-lo de alguma forma à minha cabeça para me ligar e desligar sempre que me apetecer. Será roxo, em pano e com berloques de renda. O meu campo de visão vai ficar limitado, mas acho que, por vezes, vejo mais do que aquilo que desejaria realmente ver. Na verdade, não sei bem para onde iria com o meu abat-jour, mas tenho a forte sensação de que arranjaria bastantes seguidores, homens vergados com albardas sobre as costas, moças sorridentes com varões de cortinados batendo-me ao de leve, pensionistas sem dentes, envoltos em toldos de cafés, e cães, muitos cães atrás de mim.

terça-feira, junho 28, 2005

Existem histórias que acabam antes de começar


Paula Rego

Emoção é um cão sarnento
Mordendo-me para uivar como noventa por cento das pessoas desta cidade
O cão vence o lobo dentro de mim

Muitas frases falharam-me ao jantar
Os restos do teu homem pairavam sobre nós apesar da pálida luz
Tive de beber o meu copo em silêncio
E olhar para ti profundamente, ainda que desconcentrado
Tive de parar de correr na difícil esquina
Que me faz sentir pequeno, espero agora um telefonema

Bom vinho
E um delicioso couscous marroquino
Estiveste muito perto naquela festa à noite
O coração aterrou como um convidado repugnante, gaguejei
Mas o teu caso foi realmente muito suave

Em vez de te atacar com um lobo na floresta
Lambi a tua mão como um cão que pede amor


Abdel ilah Salhi
Trad. Pedro Amaral

quinta-feira, junho 23, 2005

St. Paul e Isso Tudo


Matisse

St. Paul e Isso Tudo


Completamente embaraçado e sorrindo
entro
sento-me e
encaro o frigorífico
é Abril
não Maio
é Maio

pequenas coisas que têm de se assegurar de manhã
depois das grandes coisas da noite
queres que eu venha? quando
penso em todas as coisas em que tenho pensado sinto-me louco
apenas a "vida em Birmingham é o inferno"
apenas "sentirás a minha
falta mais isso é bom"
quando as lágrimas de uma geração inteira forem reunidas
não encherão mais que uma chávena de café

só porque se evaporam

não significa que a vida tenha calor

"este sonho vário de viver"
estou vivo contigo
cheio de gozos ansiosos e ansiedade gozosa
dureza e suavidade

ouvindo enquanto falas e falando enquanto lês
leio o que tu lês
tu não lês o que eu leio
o que está certo, eu é que tenho curiosidade
tu lês por certa razão misteriosa
eu leio apenas porque sou um escritor
o sol não se põe necessariamente, por vezes só desaparece
quando aqui não estás alguém entra e diz

«oh,

não há dançarino nessa cama»
Ó os verões Polacos! esses esboços!
esses dentes pretos e brancos!
nunca vens quando dizes que vens mas por outro lado é certo que vens

Frank O'Hara, "Vinte e cinco poemas à hora do almoço"
Trad. José Alberto Oliveira
Assírio & Alvim

quarta-feira, junho 22, 2005

Todo Cambia


Miró

Cambia el rumbo el caminante,
Aunque eso le cause daño
Y así como todo cambia,
Que yo cambie no es extraño

Cambia, todo cambia, cambia, todo cambia

Cambia el sol en su carrera,
Cuando la noche subsiste
Cambia la planta y se viste
De verde la primavera

Cambia el pelaje a la fiera
Cambia el cabello el anciano
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño

Pero no cambia mi amor, por más lejos que me encuentre
Y el recuerdo ni el dolor, de mi pueblo y de mi gente

Y lo que cambió ayer, tendrá que cambiar mañana
Y así cambio yo, en estas tierras lejanas

Cambia, todo cambia, cambia todo cambia...
Cambia todo cambia...

Julio Numhauser

terça-feira, junho 21, 2005

Cravo



Não sei quando começou nem quando acabou, mas creio que passei quase três horas naquele estado letárgico à espera de algo esclarecedor e brilhante no fim. Foi algo hipnótico, extra-sensorial, isso posso garantir-vos. Lembro-me apenas da melodia de um cravo que ia e vinha ao sabor de um vento caprichoso. Pela maneira como tocava, o autor seria alguém que queria amaciar a alma ou penitenciar os seus próprios pecados. Era o complemento musical ideal para o objecto da minha atenção naquela tarde inesperada.

segunda-feira, junho 20, 2005

Canção Popular


Der arme Poet, Karl Spitzweg

Canção Popular

Todo o verdadeiro poeta é um monstro.
Destrói pessoas e o seu discurso.
O seu canto eleva uma técnica que arrasa
a terra para que não sejamos devorados por vermes.
O bêbado vende o seu casaco.
O ladrão vende a sua mulher.
Apenas o poeta vende a sua alma para separá-la
do corpo que ama.

Tomaž Šalamun
Trad. por Pedro Amaral

Domingo de manhã


Sunrise with Sea Monsters, J. Turner

- Posso dizer agora quantas frinchas tem o estore do meu quarto, se não o fechar por completo: vinte e oito. Desvio o olhar para a parede da frente e consigo distinguir três pontos na parede, por entre as sombras que bailam no meu quarto de domingo de manhã. Tento uni-los tropegamente, formo um triângulo. Lembro-me então que Geometria era suportável, mas Álgebra passava-me ao lado. Repito este exercício vezes sem conta, não consigo arranjar motivos para me levantar. Não trabalho hoje, por isso não vou chegar atrasado. Ouço sem esforço a música do rádio-despertador dos vizinhos. Não posso garantir que estejam a faze-lo, sempre me distraíam, mas os chatos dos Pink Floyd não me deixam ouvi-los. Apesar de dormir de tronco nu, afasto o lençol para o lado, sinto calor.
Fecho os olhos e tento adormecer mais uma vez.

sexta-feira, junho 17, 2005

Notas de Um Velho Safado



"...Para aprender, não leia Karl Marx, merda seca demais. Por favor, aprendam o espírito. Marx é apenas tanques invadindo Praga. Não se deixe pegar dessa maneira por favor. Antes de tudo, leia Celine. O maior escritor em 2000 anos. Naturalmente, O ESTRANGEIRO de Camus tem que entrar. CRIME E CASTIGO. OS IRMÃOS. Todo o Kafka. Todos os trabalho do autor desconhecido John Fante. As histórias curtas de Turgenev. Evite Faulkner, Shakespeare, e especialmente George Bernard Shaw, a mais inflada fantasia que floresceu em todos os Tempos, uma verdadeira merda que expandiu-se com conexões políticas e literárias para muito além do que se possa imaginar. O único sujeito mais jovem que consigo pensar com a estrada pavimentada à sua frente e beijar-lhe a bunda sempre que necessário foi Hemimgway, mas a diferença entre Hemimgway e Shaw era que Hem escreveu coisas boas no começo e Shaw só conseguiu escrever asneiras durante toda sua vida.
Portanto, aqui estamos nós misturando Revolução com Literatura e ambos combinam. De alguma forma tudo combina, mas eu fiquei cansado e espero pelo amanhã.
Será que o Homem baterá à minha porta?
Quem se interessa?
Espero que isso vos faça vomitar vosso chá..."

BUKOWSKI, Charles.
Trecho de "Notas de Um Velho Safado"

quinta-feira, junho 16, 2005

"As mulheres"



É bom cheirar as mulheres. Cheirar as mães e as filhas. Cheirá-las quando descem do autocarro, quando estão à espera, quando não se pentearam ainda. Quando de mau humor recolhem os lençóis de repelão e sentem nelas a grande miséria do dia, quando mandam alguém por sabão ou cebolas ou tomam um copo. É bom cheirar de vez em quando a santa, oportunamente a puta, valentemente a própria mulher. Há que cheirar a casa quando se veste, cheirar as abelhas e o café quando já abalou. Cheirar o canto da porta e a serradura. As folhas de rascunho, o mecanismo do guarda-chuva, o anel esquecido, o jornal ainda morno. Há que cheirá-las quando se movem. Cheirá-las profundamente quando se retiram. Cheirar as saliências da pedra, cheirar a sopa e a noz quando se assustam. Há que cheirá-las sem ter medo dos seus bolsos, cheirar a sua respiração e o seu vazio, o seu mar e a sua pesca.É bom cheirar as mulheres e dizer: isto é pó, isto é cera, isto é pasto.

"Novíssimos poetas da Costa Rica" in Matérika

A Magia do Primeiro Post

Por favor, estejam à vontade.
Façam de conta que estão em vossa casa.
Ou, simplesmente, façam de conta.

Bem-vindos!