quarta-feira, setembro 28, 2005

A visão enfraquecida


Michael Sweerts


A visão enfraquecida – meu poder,
Duas setas invisíveis de diamante;
A audição falha, cheia de trovoadas passadas
E de murmúrios da casa de meu pai;
Músculos endurecidos que se vergam
Como bois cinzentos arando o campo;
E à noite, por detrás de meus ombros
Não mais cintilam duas asas.

Sou uma vela consumida no festim.
Colhe minha cera ao alvorecer,
E esta página te contará um segredo:
Como chorar e onde ser orgulhoso,
Como distribuir o último terço
De prazer, e tornar fácil a morte,
E então, ao abrigo de um tecto qualquer,
Brilhar, como uma palavra, com luz póstuma.

Arsenii Tarkovski

segunda-feira, setembro 26, 2005

O dia já deu de si

O dia já deu de si,
e a noite entrou devagarinho, a medo.

Três indicadores luminosos
acenderam-se mesmo à minha frente:

Museu do Lego
Museu da Mulher
Museu da Luz

Apontavam os três
na mesma direcção.

Passei o vermelho,
virei no sentido oposto.

Chego a casa finalmente:

Esfrego então
(com as mãos limpas)
aquele unto de insónia
na cabeça.

Resulta, pois
acordo sempre nos meus braços
logo pela manhã.

terça-feira, setembro 20, 2005

Ai que estou perdido


Aldemir Martins

IX

Ai que estou perdido
num fundo de mato espantado mal-acabado

Me atolei num útero de lama
O ar perdeu o fôlego

Um cheiro choco se esparrama
Mexilhões estão de festa no atoleiro

Atrás de troncos encalhados
ouço guinchos de um guaxinim

Parece que vem alguém nesse escurão sem saída

- Olelé. Quem vem lá?
- Eu sou o Tatu-de-bunda-seca

-Ah compadre Tatu
que bom você vir aqui
Quero que você me ensine a sair desta goela podre

- Então se segura no meu rabo
que eu lhe puxo

(...)

"Cobra Norato", Raul Bopp

segunda-feira, setembro 19, 2005

A grande realidade


Georgia O'Keeffe

A grande realidade neutra do que eu estava vivendo me ultrapassava na sua extrema objectividade. Eu me sentia incapaz de ser tão real quanto a realidade que me estava alcançando – estaria eu começando em contorções a ser tão nuamente real quanto o que eu via? No entanto toda essa realidade eu a vivia com um sentimento de irrealidade da realidade. Estaria eu vivendo, não a verdade, mas o mito da verdade? Toda vez em que vivi a verdade foi através de uma impressão de sonho inelutável: o sonho inelutável é a minha verdade.
Estou tentando te dizer de como cheguei ao neutro e ao inexpressivo de mim. Não sei se estou entendendo o que falo, estou sentindo – e receio muito o sentir, pois sentir é apenas um dos estilos de ser. No entanto, atravessarei o mormaço estupefacto que se incha do nada, e terei que entender o neutro com o sentir.

“A Paixão Segundo G.H.”, Clarice Lispector
Relógio D’Água

sexta-feira, setembro 16, 2005

Cativo


Josef Liesler

Passar uma vida inteira com a permanente impressão que se entra pela porta das traseiras das coisas, encostado à parede de pés nus, frios, seguir a própria sombra e descobrir anões nos bolsos em vez de moedas para um café. Só por uma vez, ter a coragem, a souplesse de entrar pela porta de frente das coisas, exibir botas lustradas e um lenço vermelho, e ser galanteado por belas señoritas de leques e mantillas.
Enrolem lá essa passadeira vermelha - está um tamanho acima.

quarta-feira, setembro 14, 2005

Invento o Mundo


Invento o mundo, segunda edição,
segunda edição corrigida,
no riso, para os idiotas,
no choro, para os melancólicos,
nos pentes, para os carecas,
nos sapatos, para os cães.

(…)

O Tempo (capítulo II)
tem direito a intrometer-se
em tudo, seja no bom ou no mau.
E contudo, o que corrói as montanhas
e afasta os mares e usa
estar presente no giro das estrelas,
não há-de ter o mais pequeno poder
sobre os amantes,
porque nus de mais,
porque abraçados de mais, o espírito
eriçado como pássaro num ombro.

A velhice é só moral
em vida de criminoso.
Por isso todos são jovens!
Sofrer (capítulo III)
não tira o peso ao corpo
e a morte
virá enquanto dormires.

E sonhares
que afinal nem é preciso respirar,
que o silêncio sem respiração
é boa música,
és pequeno, uma faúlha,
e se te tocam apagas-te.

Morte, só uma assim. Dor maior
experimentaste ao segurares uma rosa,
e terror maior sentiste
vendo a pétala no chão.

Mundo, só um assim. Viver,
só desta maneira. E morrer, como antes visto.
tudo o resto é como Bach
tocado em serra de circo.


Wislawa Szymborska, “Paisagem Com Grão de Areia”,
Trad. Júlio Sousa Gomes
Relógio D´Água

segunda-feira, setembro 12, 2005

Béla Bartók


Alfred Sisley

- Pára! Pisaste na minha poça! Tens de pagar o tributo.
Olhei em meu redor. Não vi ninguém. No entanto, a voz parecia vir de perto.
- Estou aqui, grandalhão. Aqui em baixo. Vais ter de me pagar tal como os outros!
Olhei para baixo e vi um sapo do tamanho da minha mão a falar para mim.
- Como te chamas? Não reparei na poça.
- Chamo-me Béla Bartók, coaxou. Todos sabem que as poças deste parque são minhas e toda a gente deve pagar-me a taxa para pisar nesta poça e noutras quantas.
Não respondi. Creio que ficámos cerca de cinco minutos a olhar um para o outro, sem dizer uma palavra.
- Toma. Tens troco?
- Não, mas fica assim: desconto-te da próxima vez que meteres a pata na poça.
- Ok, obrigado.
- Adeus.

quinta-feira, setembro 08, 2005

O macaco nu


Rob Elliot

Existem actualmente cento e noventa e três espécies de macacos e símios. Cento e noventa e duas delas têm o corpo coberto de pêlos. A única excepção é um símio pelado que a si próprio se cognominou Homo sapiens. Esta insólita e próspera espécie passa grande parte do tempo a examinar as suas mais elevadas motivações, enquanto se aplica diligentemente a ignorar as motivações fundamentais. O bicho-homem orgulha-se de possuir o maior cérebro dentre todos os primatas, mas tenta esconder que tem igualmente o maior pênis, preferindo atribuir erradamente tal honra ao poderoso gorila. Trata-se de um símio com enormes qualidades vocais, agudo sentido de exploração e grande tendência a procriar, e já é mais do que tempo de examinarmos o seu comportamento básico.

"O macaco nu", Desmond Morris

quarta-feira, setembro 07, 2005

A Paixão Segundo G.H.




Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade, meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade inflamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus primeiros contactos com as verdades sempre me difamaram.

Clarice Lispector, “A Paixão Segundo G.H.”

sexta-feira, setembro 02, 2005

Dom da palavra


Mark Rothko


Quando se trabalha todos os dias com a palavra, dá-se um fenómeno curioso que passa algo despercebido à maioria daqueles que pensam que domesticaram este bicharoco. Invertem-se aqui os papéis: o agressor torna-se vítima e a vítima veste a pele do agressor. Se, por um lado, não será cientificamente correcto afirmar que se trata de uma doença, podem se manifestar, porém, certos sintomas cujo diagnóstico é reservado. Somos completamente formatados pela palavra e nem sequer nos damos conta. Senão vejamos: hoje, por exemplo, sinto-me algo itálico, inclinado a citar algo brillant, mas há dias em que um certo negrito se abate sobre mim, fico inchado e ninguém pode se aproximar do meu perímetro. Mas, é claro que as coisas nem sempre são assim tão textuais (!...) : por vezes, o meu estado de espírito é capaz de percorrer todas as cores de uma paleta e saltitar de parágrafo em parágrafo, misturando tudo e todos.

E é isto: .

quinta-feira, setembro 01, 2005

O Diabo Voyeur


Rob Elliot

O DIABO VOYEUR

Com as unhas presas na porta
se debate a alma de um sujeito.
Seus dedos inchados e o olho lúbrico e impotente
Guincham à sombra de um maldito divã.
Era um voyeur do inconsciente o pobre diabo.
Escutava com o olhar os prazeres secretos da carne.
Olhava descortês o tremor da voz nos amantes.
Apaixonava-se com a crosta do rancor
e a ameaça de matar a quem alguma vez quis.
Estava ali concupiscente o demônio entre as pernas,
metendo o nariz e o rabo onde não era chamado.
Na inconsciência, digo, porque o gênio se perde em desfigurações.
Há um diabo cativo na palavra.
Veste-se de anjo da guarda e responde pelo nome de Esperança
ou Caridade, não sei, parece Jocasta com a voz de Édipo,
ou então Tirésias espiando com seus olhos cegos.

José Ángel Leyva, trad. Floriano Martins