terça-feira, setembro 30, 2008

segunda-feira, setembro 29, 2008

Enfermidades da Boca


por Anne Frank





Querida Kitty,

os meus lábios romperam-se
de madrugada
e sinto uma secura
tremenda nos cantos da boca
não consigo sequer
engolir a saliva
como se não bastasse
o papá perdeu hoje
a paciência comigo
diz que passo a vida
a escrevinhar
coisas inúteis
às vezes apetece-me sair
deste buraco e entregá-lo
aos alemães
amanhã irei arrepender-me
destas palavras
eu sei querida Kitty
mas as enfermidades da boca
põem-me fora de mim

Tua Anne

domingo, setembro 28, 2008

Como matar um odioso e roçagante discípulo de Gaudí - Diário de um Peregrino de Sant Jordí

4º Dia

- Sou batedor de um novo caminho, o Caminho Redentor de Sant Jordí.

Ninguém reagiu. Um velho com as faces muito ruborizadas deu um passo em frente. Tinha as pernas mais magras do grupo. Ficou ali parado a estudar-me de cima a baixo.
- Não és homem para mentir, faltam-te ainda alguns anos para fazeres isso bem - disse-me com uma voz rouca e oracular.
O pequeno grupo lá seguiu caminho. O velho aproximou-se de mim, agarrou-me no braço direito com alguma rudeza e seguimos na direcção contrária à Via de La Plata que é o maior caminho de S. Tiago em terras de Espanha. Na última noite que acampámos juntos, disse-me que tinha sido metalúrgico durante trinta anos numa fábrica em Sheffield e que, às sextas-feiras, gostava de comer "tarts" e embebedar-se. Às portas de Cárceres, sumiu. Nesta terra enfeitada pelo sol, apressei-me a estudar os movimentos dos grandes pássaros negros que planavam tristemente sobre a cidade. Acocorou-se diante de mim um contra-regra gorducho e sorridente que me ditava baixinho como fazê-lo. Dia sim, dia não, surgiam nuvens esponjadas que se assemelhavam ao perfil do nobel galego, Camilo J. Cela, de boina e com a língua de fora.
- Um sinal auspicioso! - pensei enquanto apertava firmemente o meu bordão.

Como matar um odioso e roçagante discípulo de Gaudí - Diário de um Peregrino de Sant Jordí

9º dia

Para vos poupar de um certo suspense irritante que vulgarmente se inclui no feitio convencional dos diários picarescos, posso assegurar-vos que o matei no seu próprio gabinete. Se a vossa paciência assim o permitir, posso prová-lo de forma irrefutável. No Jardin de La Fecundidad, na parte baixa da orgulhosa cidade de Granada, é possível ainda ouvir os grunhidos que descem do topo das árvores. À noite, o efeito é ainda mais impressionante. Pode levar-vos às lágrimas e secar os vossos ossos por completo se forem do tipo sensível. Os ecos da sua morte propagaram-se por toda a península e agora todos são suficientemente corajosos para blasfemar o seu nome. A História está encharcada de homens que se tornaram heróis por acaso. Creio não estar enganado se afirmar que finalmente encontrei a minha vocação.

sexta-feira, setembro 19, 2008


Eduardo Recife

O quadro

Estava sentada na beira da cama a olhar para o campo de algodão. As cabanas dos escravos não tinham portas. Nesse final de tarde, o senhor ofereceu-lhe um quadro com uma grande planície. Lembra-se de ele ter dito que era no longínquo oeste. A partir desse dia, que era o terceiro, sempre que o seu senhor estivesse em cima dela, a escrava não desviaria o olhar do quadro antes que ele acabasse.
Passaram cinquenta anos. Já todos tinham partido. A Guerra acabara, e três dias antes da sua libertação, a velha escrava dirigiu-se à mansão com um embrulho debaixo do braço. O senhor recebeu-a algo surpreendido. A escrava entregou-lhe o embrulho com as duas mãos e foi-se embora. O senhor seguiu-a com o olhar até ela desaparecer no fundo da alameda. Cortou então o atilho grosseiro com a faca, rasgou o papel e ficou ali na soleira a olhar para um quadro em branco.

quarta-feira, setembro 17, 2008

Novíssimos haikus livres (para médicos forenses de meia-idade)





uma mulher-violeta
brotou junto ao charco

entre as pernas
gotas de orvalho borrifadas

ainda por colher
estará à venda?

atrás dela

pegadas de homens-rã

recuei a medo
com a lua dentro de mim

sou o homem-camélia
que murcha uma vez

segunda-feira, setembro 15, 2008

Jogo do Bicho



No brasileiríssimo Jogo do Bicho, o número 24 está associado ao Veado que, por sua vez, é um animal associado à homossexualidade. Quando o filho nasce no dia 24, a homofóbica mãe brasileira prefere registar (ou registrar) o nascimento do seu filho no dia 23 ou 25. No entanto, pode registá-lo ou baptizá-lo com nomes extraordinários como Bambi Nascimento ou até Chifres Júnior dos Santos.

(Pouco depois da postagem do texto anterior, senti-me estranhamente envergonhado, sujo até, como se a Clarice Linspector - que irei venerar até à morte - estivesse a vigiar-me por cima do ombro. Peguei então num livro do Rubem Fonseca da estante, colei-o junto ao peito e o sentimento mau passou. Me perdoa, minha Clarice).

o Deus da Higiene Facial

o Deus da Higiene Facial
(o etéreo_____ ______ -

ou aquele cujo nome não deve ser proferido)
disponibiliza-me
uma providencial
Wilkinson for Women
no fundo da primeira gaveta

talvez porque

pus em causa
a minha idiossincrasia
enquanto bebia uma marguerita
em Lloret del Mar
talvez porque
deseje um Portugal
dos Pequeninos sem ATMs
mais seguro
talvez porque
nunca deixei de gostar
de gravatas de seda
exclusivas

mas vamos a isto.
Desfiro o primeiro golpe
com tauromática galhardia
e cai um fino fio de sangue
sobre o lavatório

a passividade estival
faz-me contemplar
o sangue enquanto
questiono novamente
os meus ideais
parapolíticos
e me ofereço
ao meu novo deus.

sexta-feira, setembro 12, 2008

Tróia



Antes de Usar
Leia com Atenção
As Instruções
Neste Verso

The Goldenteethchickjacking


Ouviu falar do flagelo no salão de estética enquanto fazia meia perna e sentiu-se imediatamente arrebatada pela ideia. Teria de lavar mais escadas, fazer o frete e sair com uns estudantes nos tempos livres, mas, no fim, valeria a pena. Com o implante da prótese dourada, iria combater a dramática solidão em que vivia e seria obscenamente famosa.
No fim, e correndo o risco de me estar a repetir, no fim, valeria a pena.

quarta-feira, setembro 10, 2008

Os macacos do velho Boris



Para o Rui M. Amaral


Boris conseguira despachar os macacos por um bom preço. Estava cansado das suas insubordinações e fúrias repentinas, e, por vezes, sentia-se ameaçado quando acordava de manhã e via-os a dormir a seu lado.
-
Como é que macacos maniqueístas conseguem escapar de jaulas de aço? - interrogava-se enquanto coçava o cocuruto rapado.
Treinou-os durante seis longos anos para o transportar num magnífico cadeirão de vime, mas os macacos demonstravam cada vez mais sinais de desmazelo e chegaram a ameaçar o búlgaro com tacos de cricket. Onde é que eles foram desenterrar o raio dos tacos?! A verdade é que as coisas tinham mudado drasticamente. Seria talvez porque Boris tinha engordado muito nos últimos anos? Ah mas a vida finalmente sorria ao velho Boris! Havia sempre ilustres admiradores entre a audiência que retribuíam generosamente o seu espectáculo de rua. Mas chegara a hora de se retirar e a macacada estava a dar mais dores de cabeça do que lucro. E assim foi. Boris ainda sentiu um aperto no peito quando os viu partir com a caravana de ciganos, mas foi melhor assim. Com esse dinheiro, Boris iria aproveitar para concretizar o sonho de uma vida: comprar um transístor AM incorporado numa mesinha de cabeceira laqueada. A peça era bastante pesada, uma vez que o tampo era feito de mármore de Carrara. Boris já se imaginava a tactear suavemente o mármore fresco enquanto ouvia os longos discursos do presidente antes de adormecer.

terça-feira, setembro 09, 2008

vê-se logo que
quem por aqui passou
gostava de dormitar
num forno de cal
tinha a crosta da cabeça
branca como os penhascos
de Dover
os álbuns com milhares
raios-X demonstram
uma vaidade
e uma necessidade de exposição
sem limites
usava braçadeiras metálicas
nos dedos para ter
a mão mais segura
quando garatujava

se algum dia alguém
conseguir provar
a sua precária existência
será por causa dos versos
pendurados no tecto
cheio de humidade -
alguns encontram-se
em adiantado estado de decomposição
como pilotos que se ejectam
e ficam presos nas árvores

sábado, setembro 06, 2008

Isso é muito aborrecido

- isso é muito aborrecido não tenha a menor dúvida
- o que me foi acontecer
- sabe acontece sempre a quem não merece
- e logo a mim que não faço mal a ninguém
- esqueça lá isso deus não dorme
- mas isto não fica por aqui ai não-não
-
-
- quer fazer amor selvaticamente?
- ah! o senhor por quem me toma?
-
- o senhor como me toma?
-
-
- já acabou?
- sim
- ora adeus cavalheiro
- adeus minha senhora

quinta-feira, setembro 04, 2008


Felix Vallotton

terça-feira, setembro 02, 2008

no dispensário


sento-me entre um engraxador
e um yorkshire
o engraxador traz um letreiro
ao pescoço que diz "Homem-Prodígio"
faz estalidos com a boca
parece-me asseado
o yorshire retrai a respiração
e quando já não aguenta mais
cospe uma polpa rosa para
uma escarradeira de esmalte com
pequenas manchas que parecem
nuvenzinhas
à minha frente uma ex-cabeleireira
com um guarda-chuva de cerejas
sobre as pernas
olha ferozmente para mim
"Quero/quero fazer-te num dossel"
parece dizer-me baixinho
enquanto faz força
no dedo picado
com o algodão hidrófilo