sábado, novembro 14, 2020

Princesa chinesa

Uma princesa chinesa

caminha entre nós. 

Não olhem, 

não ouçam, 

a profecia

ou a memória. 

Ela caminha erecta, 

de estatura matinal, 

carregando um jarro de escuridão

na sua cabeça. 

Fiquem quietos, 

não se mexam, 

o jarro está cheio

do orvalho dos seus olhos. 

Ela carrega-o erecto

nestes tempos inconstantes. 

O seu equilíbrio

é espantoso, 

não a assustem, 

tenham compaixão por ela, 

para vós próprios, 

cada gota

o nosso resgate. 

A princesa caminha

em segurança,

com coragem. 

Ela já está à porta, 

à espera

de subir as escadas.


quarta-feira, outubro 14, 2020

A escada em caracol

O que é que faz aquele homem de Deus subir a mesma escada em caracol uma, duas, três vezes por dia? Não há nada lá em cima, não há vistas grandiosas, não há nada que o surpreenda, não tem nenhum objecto que precise - porque é que ele continua a subir e a descer a estreita escada como um maníaco?!
Talvez seja um simples exercício de meditação. Talvez seja um acto compulsivo que não consegue resistir, um ritual, uma superstição. Talvez até seja um exercício cardio, quem sabe? E olhem só para aquelas manápulas. Parecem pequenos baldes de retro-escavadoras!
Nada disto faz muito sentido. Que homem tão estranho.

segunda-feira, outubro 05, 2020

Once

quarta-feira, setembro 23, 2020

Jardim do Éden

Sinto esta absoluta necessidade de ser convidado para algo. Sinto esta absoluta necessidade de embarcar num navio a vapor e contornar a costa das Sirtes e do Alto Volta. A minha Olivetti Lettera não sabe escrever romances grossos e maçudos - uma grande vantagem nos dias que correm. A minha Olivetti Lettera no centro do meu café para-burlesco. Quero abrir um Cabaret Voltaire, servir cocktails sofisticados e dançar ao som do "rock and roll". Fumo, fumo, muito fumo. Quadros de Georgia O'Keeffe e de Mary Cassat espalhados pelas paredes. Pinturas medíocres dos Alpes. Absinto e jóias baratas, cartas de tarot gastas, espreguiçadeiras de veludo manchadas. Pequenos labirintos para os WCs. Proibida a entrada a faquires menores de idade e a certos jesuítas. As palavras fazem ricochete na minha Olivetti Lettera - sejam bem-vindos ao "Jardim do Éden"!


quinta-feira, setembro 03, 2020

"Mountolive", Lawrence Durrell

 

quarta-feira, agosto 19, 2020

segunda-feira, agosto 10, 2020

"Il barone rampante" - O barão trepador

 

 

Italo Calvino compôs a trilogia O Visconde Cortado ao Meio, O Barão Trepador e Cavaleiro Inexistente. É legítimo afirmar aqui, neste espaço público, que estas personagens habitaram sempre em mim. Às vezes uma de cada vez, às vezes as três ao mesmo tempo. Quando digo "habitaram" não estou a usar uma figura de estilo, é mesmo assim, insidiaram-se e fui sendo obrigado a viver com elas ao ponto de não ser saber onde elas começam ou onde é que eu termino. Talvez o meu favorito seja O Barão Trepador.

Cosimo, um jovem nobre italiano do século XVIII, revolta-se contra a autoridade paterna, trepando para cima das árvores. Aí vai permanecer durante o resto da sua vida, adaptando-se eficazmente a uma existência arbórea – caça, semeia e colhe, joga vários jogos com amigos que têm os pés assentes na terra, combate incêndios florestais, resolve problemas de engenharia e até consegue manter casos amorosos. Do seu poleiro nas árvores, Cosimo vê passar os tempos de Voltaire e assiste à chegada do novo século.

Naturalmente, há esta necessidade de enraizar, de aterrar que eu tenho muita dificuldade em fazer (tal como o próprio Barão).  

 

segunda-feira, julho 27, 2020

segunda-feira, julho 20, 2020

Tai Chi

O mundo precisa de um grande mestre - "grande" no sentido mais literal - precisamos de um "bom gigante" com um pé na América e outro na China a fazer incessantemente movimentos (taos) de Tai Chi Chuan para refrescar o mundo. Ou se quiserem, para harmonizar a "coisa" que está um pouco pestilenta.


sexta-feira, julho 03, 2020

Os Trolhas

Madeline County, PT.

Vejo-os a passar todos os dias, sempre à mesma hora. Vão e vêm em bandos de quatro, cinco. Têm a pele seca e tisnada pelo sol, usam a mesma roupa velha todos os dias. Apenas o mais novo tem a barba feita, mas já tem rugas à volta dos olhos. De tanto caminharem em grupo, partilham já a mesma passada, nem muito rápida nem muito lenta. Sigo-os com o olhar a partir da minha janela, sempre a uma certa distância para não me verem (não tenho cortinas). Às vezes, trocam algumas palavras entre si e sorriem, às vezes os dentes não aparecem. Um deles é bastante perscrutador, sonda tudo em seu redor quando passa.
E eis chegado o momento "Aconteceu no Oeste". O vento norte levanta a poeira, o sol já vai alto. Não há mais ninguém na rua. Beberam, encheram a barriga e têm de regressar. A grua range lá no alto com as rajadas de vento. Um deles deixa-se ficar para trás para acender um cigarro e olha por uns segundos para a minha janela enquanto solta o fumo. Podem acreditar quando digo que tem o mesmo olhar frio e azul do Frank (interpretado pelo Henry Fonda).
E é claro que ele já sabe. É claro que ele está farto de saber que estou aqui.

domingo, junho 28, 2020

Síndrome de Munchausen


E se tudo isto não passar de uma grande alucinação à escala mundial?

O primeiro a morrer, o designado "paciente 0",  não morreu da doença. Morreu de causas naturais. Morreu porque Deus ou ele próprio achou que era chegado o tempo para morrer.

E se a pandemia estiver apenas nas nossas cabeças? O paciente 0 deu o mote. Uns querem imitá-lo, apropriam-se de uma doença que não existe (uma espécie de placebo ao contrário), os mais tristes escolhem morrer, os mais velhos encontram o verdadeiro motivo. É realizada a grande dramatização, colocamos máscaras, desinfectamo-nos até ficarmos translúcidos, vamos acabar por desaparecer.

Recolhemo-nos nos nossos casulos por várias semanas para desesperar, para romper, para reflectir, para ressuscitar.

Os mais pequenos não entendem muito bem o que estamos a fazer. A sua inocência protege-os da paranóia generalizada ou, se quiserem, da grande imposturice.

Talvez seja o Inconsciente Colectivo a dizer que as coisas como estão não podem continuar, a velha ordem têm que acabar de vez, há que acelerar o processo para a mudança. Morte, ressurreição, vida, e por aí fora.

"Há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar; tempo de matar e tempo de curar; tempo de derrubar e tempo de construir. Há tempo de ficar triste e tempo de se alegrar; tempo de chorar e tempo de dançar; tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las; tempo de abraçar e tempo de afastar."

Eclesiastes 3:1-17

Irmãos











Orestes rodou sobre os calcanhares e virou-se para trás. A mesma estrada de pó estendia-se à sua frente. "Quando olhamos para trás, estamos no fundo a olhar também em frente", pensou. "Se eu caminhar para a frente e fizer outra vez o caminho que fiz até aqui, nada me diz que as mesmas coisas que me aconteceram até agora me vão acontecer novamente". Deu três passos para a frente. Ao fundo, uma fatia prateada do Egeu aparecia agora à sua direita. As alseídes davam gritinhos histéricos e uma delas apontou para ele. Orestes estugou a passada e começou a correr devagar, depois mais depressa, mais depressa ainda, abriu a boca o mais que pode para deixar entrar mais ar, levantou os joelhos quase até ao queixo, esticou os dedos das mãos para cortar o ar, correu, correu, correu até ficar sem fôlego, até que não pode mais e deixou-se cair exausto na berma do caminho. Respirava tragos de poeira que ele levantara e que a brisa lhe trazia. O coração deixou de rufar durante três segundos e um dos trapezistas deu finalmente o triplo salto mortal para os braços do outro que estava quase roxo de tanto balouçar de cabeça para baixo. Já não era sem tempo. Orestes tinha deixado a στενοχωρία para trás — ou à frente. Sentiu-se aliviado e recompensado por ter tido a coragem para se virar e fugir nem que fosse por uns breves instantes da στενοχωρία que o perseguia, correndo para trás-frente; a maior parte das pessoas escolhe fugir para a frente-frente o que raramente dá bom resultado; no entanto, também é verdade que algumas pessoas se aconchegam lá atrás, na tristeza que tão bem conhecem e de lá não querem sair.
Héspera, a deusa-ninfa do Entardecer, gostou tanto do crepúsculo que criou ontem para homenagear Homero que quis recriá-lo e preparava-se agora para tingir os céus com os mais belos tons arrebolados sobre o Egeu cálido e sereno; estendeu então um mapa feito de cumulus fractus que pareciam côdeas e migalhas rosadas e douradas, e que pretendiam ser todas as ilhas e acrescentou ainda um manto diáfano de cirrostratus com o qual a deusa iria reproduzir Ática e o Peloponeso com todos os seus recortes de costa sinuosos.
Orestes pousou os cotovelos secos nas ervas, queria descansar um pouco antes de enfrentar a cidade. Vê a στενοχωρία a ganhar terreno e a aproximar-se dele a passos largos; o moço sabe que não há nada a fazer senão esperar para a engolir como sempre fez, não sabe viver sem ela. Baixou a cabeça e desejou ser Métis, a deusa titânica da Prudência para se transformar num calhau como aquele que tinha a seu lado e nunca mais sentir a στενοχωρία no seu coração; se fosse Métis, mãe de Atena, teria sabedoria e poderes suficientes para preparar e beber uma poção igual à que deu a Cronos, a pedido de Zeus, forçando-o a regurgitar os irmãos devorados pelo pai receoso dos poderes que os filhos pudessem vir a ter. Tanto quanto sei, Orestes não engoliu o irmão, apenas queria que ele aparecesse. Desejava também cuspir de vez a στενοχωρία que lhe trespassava a garganta.


"Orestes", P.A.

terça-feira, junho 09, 2020

Coffee break

Freddy & David

quinta-feira, maio 28, 2020

O Método

P: E segue algum método especial?
R: Quando as temperaturas sobem, repito sempre o mesmo comportamento de risco: vou à prateleira, pego no Bukowski, no Carver, no Saroyan, no Fante e releio as passagens sublinhadas ao longo destes anos. Durante três dias, é este o meu "binge", a minha obsessão. É engraçado que só faço isto, só aplico este método no Verão. Talvez por serem autores tão "viscerais", têm uma força animal que os impele, a todos eles, talvez seja por isso que só o faço quando o calor aperta.
P: E então escreve?
R: Depois, esgazeado por uma embriaguez de alto teor literário, tento escrever algo e, claro, espremo, espremo e nada se aproveita. Ainda assim, sou muito persistente, não..., qual é a palavra? Resiliente. É isso, sou muito resiliente. Risco a maior parte e ponho algumas passagens, algumas frases de molho para voltá-las a ler com olhos de ver dentro de onze dias.
P: Onze? Porquê onze?
R: O onze é um número mestre na numerologia, na geometria sagrada, etc. É o meu número da sorte também.
P: Que interessante. Mas e então? Passados esses onze dias aproveita alguma dessas frases?
R: Não. É claro que não.

quarta-feira, maio 27, 2020

O Caça-Balões




O fim do repouso é ditado pelo senhor Alfredo ou Caça-Balões como aqui é conhecido. É o primeiro a sair de casa, anda sempre com uma barba de três dias, arrasta o andar até meio do terreiro do Monte e pára por uns segundos para lançar um olhar estranho sobre a roupa ressequida pendurada na pequena mata de estendais. O Monte está deserto, parece que está à espera que algo aconteça. O Monte é um Grand Canyon em ponto pequeno. O lábio inferior do senhor Caça-Balões tem uma pequena cova de lado para pousar o cigarro, como um cinzeiro. Ele ajeita as calças e monta a sua motorizada estafada, uma Sachs velhinha, que apesar da idade ainda tem forças para ir daqui ao sol e voltar. O senhor Caça-Balões sai de casa já com o capacete posto na cabeça alongada. Uma vez fui casa dele levar um arranjo de costura à mulher, à Martinha, a mando da minha mãe, e fiquei espantado ao vê-lo com a cabeça desprotegida, estava à espera de o ver de capacete dentro de casa e...parecia outro homem, mais magro ainda, cabelo só nos lados da cabeça, estava de calções sentado no sofá, as veias salientes a contornarem as pernas ossudas, as mãos enormes pousadas sobre os joelhos. Lembro-me que sorriu para mim com os seus olhos cinzentos, tinha umas enormes bolsas debaixo dos olhos que também acompanharam o sorriso, sorriam com o ar mais bondoso do mundo e convidou-me para entrar, "não fiques especado à entrada, entra, entra, o teu pai está bom?".

O barulho da Sachs do senhor Caça-Balões acorda toda a gente que mora no Monte e arredores, desde a Beira-Rio ao Candal. E então acaba-se o sossego dos sábados de tarde. A velha e caprichosa mota faz "ratéres" estrondosos quando bem lhe apetece, provocando a largada das mulheres e da canalha para a rua, todos a dispararem palavrões e chistes ao mesmo tempo. O senhor Caça-Balões é como aquele flautista alemão que atraiu os ratos e as crianças para fora da cidade, só que no caso dele, apenas as crianças o seguem, com os tímpanos rompidos, aos berros e aos pinotes, enquanto engolem um rasto de fumo preto.


Acredito que as pessoas mais velhas do Monte têm uma roda da sorte dentro da cabeça que as obriga a falar da maneira como falam. As palavras que dizem são sempre as mesmas, só que um dia dizem-nas de uma maneira, outro dia de outra; essas palavras parecem fazer sentido nas suas cabeças e então repetem-nas várias vezes por dia até os mais novos as encaixarem nas respectivas cabeças, mesmo quando não lhes apetece. Acho que à medida que crescemos e amadurecemos, a roda da sorte de palavras que temos dentro da nossa cabeça vai ficando cada vez maior até que chega uma altura em que a roda deixa de crescer e depois, sem darmos conta, é chegada a nossa vez de repetirmos as mesmas palavras que os falecidos diziam, por esta ou aquela ordem. Até que a tal roda da sorte das palavras encrava de vez ou então deixamos de ter forças para girá-la dentro da nossa cabeça e calamo-nos para sempre.

"Contos de Gaveta"

sexta-feira, maio 22, 2020

sexta-feira, maio 08, 2020

Choderlos de Laclos





















"Quando uma mulher ataca o coração de outra, raramente falha, e a ferida é invariavelmente fatal".

"O nosso ridículo cresce na proporção em que dependemos dele."
„O nosso ridículo cresce na proporção em que nos dependemos dele.“

Referência: https://citacoes.in/citacoes/566042-pierre-choderlos-de-laclos-o-nosso-ridiculo-cresce-na-proporcao-em-que-nos-de/
 
 

Pierre Ambroise François Choderlos de Laclos nasceu em 18 de Outubro de 1741, em Amiens, França.

Laclos estudou na Escola Real de Artilharia de La Fère. Quando se formou, iniciou uma carreira de 25 anos no Exército. Como jovem tenente, serviu brevemente numa guarnição em La Rochelle até ao final da Guerra dos Sete Anos (1763) e passou mais tarde em Estrasburgo (1765-1769), Grenoble (1769-1775) e Besançon (1775-1776). A estadia de Laclos em Grenoble terá sido um dos períodos mais felizes da sua vida e terá servido de inspiração ao seu único romance, Les Liaisons Dangereuses ("Ligações Perigosas", 1782). Laclos foi promovido a capitão em 1771, mas sentia-se cada vez mais aborrecido com a vida militar e começou a dedicar o seu tempo livre à escrita.

Les Liaisons Dangereuses foi publicado por Durand Neveu em 1782; o livro foi considerado escandaloso, mas foi um sucesso generalizado, vendendo 1000 exemplares em um mês - um valor excepcional para a época. O romance foi considerado por alguns como um ataque à sociedade aristocrática e à moral sob o Ancien Régime; os superiores militares de Laclos ficaram indignados com o romance devido às suas implicações políticas e ordenaram imediatamente a Laclos que voltasse à sua guarnição na Bretanha. No ano seguinte, foi enviado para La Rochelle para colaborar na construção do novo arsenal e foi aqui que conheceu Marie-Soulange Duperré com quem se casaria em 1786.

Em 1985, Les Liaisons Dangereuses foi adaptado para uma peça de teatro da Companhia Real de Shakespeare pelo dramaturgo inglês Christopher Hampton. O seu sucesso levou ao filme "Ligações Perigosas" em 1988, realizado por Stephen Frears e protagonizado por John Malkovich, Glenn Close, Michelle Pfeiffer e Uma Thurman. 





quarta-feira, maio 06, 2020

quinta-feira, abril 30, 2020


Ballard outra vez

"Mais tarde, sentado na varanda a comer o cão, o Dr. Robert Laing refletiu sobre os estranhos acontecimentos que nos últimos três meses tinham ocorrido no interior do prédio enorme."


"Arranha-Céus",  J. G. Ballard

sábado, abril 25, 2020

25 Abril


O cravo fez login no Zoom, mas ninguém apareceu.

Bom.

25 de Abril para lá desta coisa que estamos a viver.

25 de Abril sempre.

terça-feira, abril 21, 2020

O pequeno ditador

Para muitos, a reabertura das creches em Maio é um evento mais esperado do que a comemoração oficial do 25 Abril deste ano (com ou sem estadistas).
Sei do que falo.
Eu estive lá, nas trincheiras domésticas, a combater o pequeno ditador de três anos. Guerra química, manchas nas paredes, granadas em forma de legos, etc. Destruição total. Uma infâmia, uma violência sem fim. Já nem falo da tortura do sono. Os diversos pedidos de clemência foram refutados com uma enorme sobranceria misturada com um desdém imperial. Mas a arma mais temível por parte do pequeno ditador é a guerra psi.
A ditadura/tirania instalou-se há muito nos meus domínios, "até onde a vista alcança".
Esqueçam lá o raio das petições.

quarta-feira, abril 15, 2020

A volta do parafuso

"There was nothing for me to do all day but roam with a beating heart."


terça-feira, abril 14, 2020

sexta-feira, abril 10, 2020

A evolução da espécie


Se a quarentena se prolongasse por mais tempo - estou a pensar por uns bons milhares de anos (mais coisa, menos coisa) - é bastante provável que a nossa fisionomia, compleição, morfologia, atributos, etc. sofressem um lenta e sábia mutação. O que vão ler é um exercício puramente especulativo, mas que obedece aos conceitos basilares do darwinismo.

1. Deixaríamos de ter impressões digitais por causa do uso mais ou menos contínuo de luvas (ou seja, não teríamos contacto directo com superfícies; assim, a necessidade de agarrar, de apreender, seria negligenciada). No entanto, não estou em condições para me pronunciar sobre as linhas da mão (Vida, Coração, Mente, os vários montes, etc).

2. A capacidade de orientação e localização ficaria bastante condicionada: as trajectórias mais curtas e pouco diversificadas (supermercados, hospitais) iriam acabrunhar o lobo parietal, a área do cérebro responsável pela orientação espacial.

3. Rosto:
   3.1. Nariz: não tenho a absoluta certeza de como seria a evolução deste incrível apêndice; tanto poderia ficar mais pequeno, mais achatado, por causa do uso prolongado da máscara, como poderia tornar-se mais bicudo, mais adunco, num esforço de diferenciação biológica dos restantes narizes já achatados. Sugiro uma leitura mais atenta da obra "O Nariz" de N. Gogol para esclarecimentos adicionais.

   3.2 Olhos: ficariam mais redondos ou rasgados. Uma vez mais, dado o uso sistemático da máscara, a visão seria o sentido mais propenso a uma evolução para passarmos mensagens não verbais; os olhos assumiriam um lugar de destaque na comunicação humana - os olhos voltariam a ser o mensageiro privilegiado de paixões, tristezas, desagrados, enfados, entusiasmos, etc.

   3.3. Orelhas: assumiriam uma forma mais parabólica, parece-me que aqui não há espaço para divergências. Iríamos estar mais atentos aos vários tons do silêncio, aos múltiplos sons da natureza (que sempre existiram), aos sons de animais selvagens que povoariam novos territórios (cidades, vilas). A ocupação gradual da malha urbana por predadores obrigar-nos-ia a um grau de alerta mais elevado.

   3.4. Boca: as bocas seriam pequenos travessões, dado que não usaríamos mais os lábios para sedução. E muito menos para cantar em grandes recintos, logo acabaria por haver uma menor projecção da voz. A actual distância obrigatória de 1, 2 metros entre as pessoas não requer um aparelho fonador muito desenvolvido. Ou, se quiserem, não obriga a grandes bocas.
           
4. Pele mais clara, rosa, translúcida. Pouca exposição solar. Não vou debruçar-me muito sobre este ponto, porque parece-me por demais evidente.

quarta-feira, abril 08, 2020

A senhora-iuca


























Hoje aterrou esta ideia na minha cabeça: neste momento, somos todos cactos, iucas e agaves. E aloés, e suculentas, talvez. 
Porquê? 
Porque não nos é permitido apertar as mãos. Nem abraçar. Nem beijar. Estamos num deserto táctil causado por um bicho invisível e temos que manter a distância para bem de todos.

Fila de entrada para o Pingo Doce. 
Uma mulher-iuca - com canadianas - discute com um segurança-cacto que deve entrar antes dos restantes que já estão na fila há algum tempo. As pessoas-cactos respeitam a distância aconselhada. O segurança-cacto informa-a que deve apresentar uma declaração/comprovativo em como tem efectivamente uma incapacidade motora igual ou superior a 25% (ou algo assim). É gerada a confusão. A senhora-iuca de canadianas atira-se dramaticamente (em semi câmara-lenta) ao chão. O segurança-cacto fica visivelmente constrangido. As pessoas-cacto não sabem o que fazer. Ninguém sai do sítio. Prometi a mim mesmo não usar o caracterizador "kafkiano" nesta história. Um senhor-agave (o seu nome é Gastão, vim a saber mais tarde) ameaça chamar uma ambulância para a senhora-iuca prostrada no chão. A senhora-iuca põe-se de pé e diz que já não é preciso. Vai-se embora a ameaçar o segurança e o PD. "Isto não fica assim". A ordem é lentamente restabelecida. Repito, não vou usar o adjectitvo "kafkiano".

O meu filho de 3 anos já sabe abraçar árvores. Já sabe dar um "chi" (na verdade, passa-se exactamente o oposto: é a árvore que lhe transmite o chi que o acalma de alguma forma, mas isso não interessa agora). Está a ser difícil desensiná-lo a não abraçar amigos ou familiares que não vivem connosco.
A senhora-iuca de canadianas - podemos reprovar a sua conduta, censurá-la, atirar a primeira pedra - estava a precisar de um abraço. Um simples abraço e tudo ficaria resolvido no mundo dos homens-cacto e das mulheres-suculentas. Era necessário um pequeno oásis afectivo ali à entrada do Pingo Doce. 

E para terminar, deixo ao vosso critério a pontuação mais adequada para esta frase:

Esta travessia no deserto é mesmo necessária 

(ponto final, ponto de exclamação ou ponto de interrogação?)



terça-feira, abril 07, 2020

Signo chinês


Este novo signo chinês está cheio de contradições: tem um perfil muito discreto, passa despercebido a olho nu, mas dá-se com quase toda a gente, é muito social.
Além de que não gosta de máscaras, é muito directo.





terça-feira, março 31, 2020

Total Condicionamento

Hora de esticar as pernas no terraço. Dou trinta voltas e conto cinquenta e duas lajes. Faço uma série de burpees e outra de agachamentos. Ao som da Dua Lipa, a diva pop do momento. Na verdade, não me posso queixar.
"Sou um sortudo, apesar de tudo", penso.
Nem todos têm o privilégio de ter um espaço exterior como este. Do outro lado das divisórias de vidro, estende-se um espaço verde que pode ser frequentado pelos outros condóminos, mas raramente vejo lá alguém.
Estico-me todo até doer cada órgão, cada membro do meu corpo. Tento romper todos os bloqueios, alinhar-me, o meu cérebro é uma folha de papel riscada por uma criança. Centenas de riscos pretos em todas as direcções, novelos de linhas, ziguezagues sobrepostos. Tento fechar as gavetas mentais que não interessam, mas no momento seguinte os fantasmas voltam a abri-las.
A morrinha da manhã alivia um pouco a coisa. Tento focar-me no presente como agora é moda fazê-lo. E o que é o Presente? Uma pandemia, o presente do universo para recalibrar a nossa espécie. Milhares de mortes "and still counting".
Penso na velhice. Esta semana notei que tinha vários pontos vermelhos nos braços e no tronco. Não existiam no mês passado. Sabem do que estou a falar? Há quem diga que são marcas de karma, uma manifestação do sobrenatural no corpo. Fazer projecções do espírito é muito fácil para mim. Quero acreditar em algo.
O meu toddler chama-me de dentro da casa, chama-me para a realidade. Está em modo permanente de "Appetite  for destruction". Ou "A petit for destruction" A eloquência dos seus gritos comove-me até aos nervos. Nervos, leram bem. Não deve ser nada fácil para ele também. Piso em legos e puzles espalhados por todo o lado e multiplico "caralhos" pela casa fora.
Vou à janela da frente para ver se a jovem do 2º do prédio oposto já está na varanda. É um relógio. Às 11:00, senta-se num cadeirão de vime tipo "Emmanuelle" e lê um tablet. Tem um corpo de quem pratica "Total condicionamento" ou "Spartans". Às vezes, tem a companhia de uma amiga que está quase sempre de máscara. Hoje não está lá ninguém. A morrinha, claro.
Penso e repenso.
"Sou um sortudo, apesar de tudo."

Não perguntem


terça-feira, março 24, 2020

Viagens

1. Frigyes Karinth estava sentado numa esplanada de Budapeste a tomar o seu café habitual. De um momento para o outro, começou a escutar o som de locomotivas a passar. O ruído característico escalou de um nível moderado para quase insuportável. Já não era uma, mas várias locomotivas que atormentavam Frigyes. Ora Budapeste já não tinha eléctricos há já alguns anos e a estação ferroviária ainda ficava bastante longe. Frigyes começava a sofrer de halucinações auditivas. Sacks, o famoso neurologista melómano, fez o prefácio desta obra incrível.
O livro chama-se "Uma viagem à volta do meu crânio" (minha tradução, dado que ainda não existe edição em PT) e é um relato na primeira pessoa da degenerescência neurológica do próprio Frigyes.

2. Há uma outra viagem que que poderá ter um efeito terapêutico (ou até profilático) durante as próximas semanas.
Aqui vai um cheirinho de "Viagem à volta do meu quarto":

«Quando viajo no meu quarto, raramente percorro uma linha recta: vou da mesa até um quadro que está colocado a um canto; daí parto em diagonal até à porta; mas ainda que, ao partir, a minha intenção seja a de me dirigir para lá, se encontro a poltrona no caminho não estou com cerimónias e instalo-me de imediato nela.»

Este excerto evidencia o "cinturão negro literário" que era Xavier De Maistre. A descrição de um percurso banal, mais do que mecânico, torna-se no relato de uma jornada que descasca cada centímetro de um espaço limitado. O tom é temperado pela influência óbvia de Laurence Sterne, claro está.
O autor, Xavier de Maistre, foi detido por duelo (viveu no século XVIII) e condenado a 42 dias de prisão domiciliária. O que resulta dessa prisão é este pequeno grande livro.

Talvez faça algum sentido (re)ler estas duas obras durante os tempos que correm para engraçar e atenuar potenciais neuroses e ansiedades.





sexta-feira, março 20, 2020

Eu e o Conde de Monte Cristo

No início desta "coisa" que estamos a viver, associava a pandemia a obras distópicas ou pós-apocalipse. Era muito fácil. Estou a lembrar-me, assim de repente, de autores como Ballard ("High-Rise" salta logo à vista), Philip K. Dick, Bradbury, a própria Margaret Atwood, etc.
De repente, a realidade alternativa cai-nos em cheio no regaço e não sabemos bem o que fazer com ela. O problema deixa de ser exclusivamente chinês. Fala-se em inimigo invisível, prateleiras de papel higiénico esfumam-se, o pânico instala-se.

Entretanto, os dias em semi-reclusão monástica ou em estado de "ermita digital" desenrolam-se - muito lentamente - e vive-se, de uma forma ou de outra. A luz ao fundo do túnel varia em função do pessimismo de cada um (e do news feed) e dou por mim a pensar cada vez mais naquela obra que marcou o início da chamada idade adulta: "O Conde de Monte Cristo".

Edmund Dantés, o protagonista, passa treze anos na prisão do Castelo d'If, sendo punido injustamente por um crime que não cometeu. A liberdade é-lhe retirada.

Bem sei que a nossa liberdade não nos foi retirada, embora estejamos praticamente confinados à nossa casa, ao nosso Castelo d'If privado. Estamos condicionados pelo Estado de Emergência declarado.
Mas o que me faz pensar na obra de Dumas, não é tanto o tópico da liberdade. É um outro personagem da obra e aquilo que ele representa para mim, neste momento: o Abade Faria, o companheiro de cela de Dantés que será o seu mestre para várias artes e ofícios, a sua bolha de oxigénio, a esperança em tempo de reclusão.

No meu caso e, neste momento, o Abade Faria consegue simbolizar muita coisa: a minha família mais próxima, as pessoas que olham para mim na rua (tentando escrutinar se tenho ou não o vírus, uma espécie de paranóia colectiva ainda inofensiva). Também consegue abarcar o meu Consciente e o meu Inconsciente. A reclusão por tempo indeterminado lança esta força incrível que não podemos deixar de confrontar: a nossa mente.

É uma excelente oportunidade para limpar a cave e o sotão mentais. Não é fácil, mas algum dia teria de ser feito. É um botão "Reset" que nos é fornecido por um vírus que ainda tem "coroa", mas que -  tenho quase a certeza - vai ser derrotado. Infelizmente, a vitória terá um preço bastante elevado, de milhares de vidas.

Não vou terminar com a frase prevísivel e estereotipada "seria bom se aprendêssemos a lição que este vírus nos está a dar, com esta situação limite que estamos a viver, etc., etc." porque seria de muito mau gosto. Todos sabemos que as coisas não são assim tão simples. Aprender demora tempo, às vezes várias gerações. Somos bem mais complicados do que os vírus.

terça-feira, março 17, 2020

Vivendo do Ócio - Nostalgia










É possível ter saudades de um sítio onde nunca se esteve?


Com um pouco de Vinicius lá pelo meio:

Eu sou como o velho barco que guarda no seu bojo o eterno ruído do mar batendo
No entanto como está longe o mar e como é dura a terra sob mim...
Felizes são os pássaros que chegam mais cedo que eu à suprema fraqueza
E que, voando, caem, pequenos e abençoados, nos parques onde a primavera é eterna.

domingo, março 15, 2020

Médico da peste

Doctor Schnabel (em pt., Dr. Bico), um dos médicos
da peste negra, séc. XVII

quinta-feira, março 05, 2020

José



O José é um ser pensante. O que é que eu quero dizer com isto? Que o José gosta de pensar muito e às vezes não escuta aquilo o que algumas pessoas designam de "a voz do coração". Não, eu não sou o José. Às vezes, os escritores projectam a sua voz através de um personagem, mas não é este o caso. Eu não sou um ser pensante no sentido mais "puro" da palavra. Dou por mim a escutar a voz do meu coração. Para ser verdadeiramente honesto convosco e comigo, sou um ser híbrido: escuto tanto a voz da minha mente como escuto a voz do meu coração.
Mas voltemos ao José.
O José tem o chamado "rio de pensamentos" dentro da cabeça. E sofre um pouco com isso. É um rio muito caudaloso. A sua barragem mental foi mal concebida e agora é tarde de mais. A cabeça do José apresenta várias fissuras e não consegue controlar os pensamentos que escapam rio abaixo. E é um rio estranho este. O José confessou-me (somos amigos de há longa data) que, de vez em quando, achava que era um cachimbo e que estava a ser fumado pelo próprio pai. E isto não é nada. Noutro dia, disse-me que era também recorrente pensar que, num destes dias, vai acordar com uma hiena a seu lado. 
Estes são apenas dois exemplos dos pensamentos do José. 
Naturalmente, José é um nome fictício. Usei este nome para proteger a identidade do meu querido amigo.

sábado, fevereiro 22, 2020

North by Northwest (1959)







I know. I look vaguely familiar.
Yes.
You feel you've seen me|somewhere before.
I have that effect on people.|It's something about my face.
It's a nice face.
- You think so?|- I wouldn't say it if I didn't.
Oh, you're that type.
What type?
Honest.
Not really.
Good. Because honest women|frighten me.
Why?
Somehow they seem to put me|at a disadvantage.
- Because you're not honest with them?|- Exactly.
Like that business about|the seven parking tickets?
What I mean is,|the moment I meet an attractive woman...
...I have to start pretending I've no desire|to make love to her.
What makes you think|you have to conceal it?
She might find the idea objectionable.
Then again, she might not.
Think how lucky I am|to have been seated here.
Luck had nothing to do with it.
Fate?
I tipped the steward $5 to seat you here|if you should come in.
Is that a proposition?
I never discuss love on an empty stomach.
You've already eaten.
But you haven't.
Don't you think it's time|we were introduced?
I'm Eve Kendall. I'm 26 and unmarried.
Now you know everything.
What do you do besides lure men|to their doom on the 20th Century Limited?
I'm an industrial designer.
Jack Phillips.
Western sales manager|for Kingby Electronics.
No, you're not. You're Roger Thornhill...
...of Madison Avenue...
...and you're wanted for murder|on every front page in America.
Don't be so modest.
Don't worry.
- I won't say a word.|- How come?
I told you.
It's a nice face.
Is that the only reason?
It's going to be a long night.
True.
I don't particularly like the book|I've started.
You know what I mean?
Let me think.
I know exactly what you mean.
That's my trademark. R.O.T.
Roger O. Thornhill.|What does the "O" stand for?
Nothing.

quarta-feira, fevereiro 19, 2020

Sombra

Pisei hoje na sombra de alguém. Senti-me estranho e recuei uns passos no momento a seguir. Não sei porque o fiz; pisar a sombra de alguém é algo que acontece a todos nós, todos os dias, sem darmos conta. No Tahiti, se pisarmos na sombra de alguém importante (como um chefe ou um homem sagrado) somos punidos ou amaldiçoados. No livro de Chamisso, Peter Schlemihl vende a sua sombra ao diabo em troca de uma bolsa que é uma inesgotável fonte de ouro. Arrepende-se amargamente (o arrependimento tem sempre um sabor amargo), porque quando as outras pessoas vêem que Schlemihl não tem sombra, fogem, assustam-se, dizem que é o próprio diabo, etc.
Num campo mais esotérico, será legítimo pensar que a sombra é o contrário escuro da nossa aura, ou até da nossa alma? Não creio, até porque nem sequer vivem na mesma dimensão.
A sombra deveria ser uma unidade de medida  para não invadirmos o espaço do outro. Uma medida louca que nunca poderia resultar nas cidades. Funcionaria apenas em locais com pouca gente, em dias soalheiros, obviamente (parece que, em dias cinzentos, a própria sombra recolhe-se para dentro de nós). Excepto quando o outro consente, claro. Uma vez que não podemos pisar a nossa sombra, entrar na sombra do outro deveria ser considerado um convite bastante especial:
"Aproxima-te, convido-te a estares sobre a minha sombra, vamos conversar um pouco agora".

terça-feira, fevereiro 04, 2020

O Panda "Corona"

Um andarilho puxa um velho
(um cidadão sénior como dizem nos EUA)
a gravidade reclama as sacas do Pingo Doce
em cada mão
ele interrompe a marcha
como que a farejar o perigo
o lote de canaviais, plumas e televisores
esconde um perigo real:

o panda "corona" salta
e com uma patada
atira o velho para o meio da estrada

a mulher dentro do stand de vendas
(um contentor com A/C)
continua a falar ao telemóvel
como se nada tivesse passado

ninguém viu ninguém vê
o velho prostrado no meio da estrada
excepto eu e a minha cabeça

terça-feira, janeiro 28, 2020

Hendrix





Fiz o exercício racional de isolar os instrumentos. Mesmo sem Hendrix na equação, a secção rítmica faz um trabalho notável. Noel Redding & Mitch Mitchell. A estrutura óssea que segura os devaneios do guitarrista.

Depois, introduzi a guitarra. Já desisti de decifrar todos os acordes. Com o baixo é possível localizar a escala, mas depois ele salpica gotas musicais que não sei bem de onde vêm. Mas também para quê? Qual é o objectivo saber a tensão ou força da pincelada em Guernica?
E depois ele meteu a língua à mistura. Não queria tornar isto num chiste erótico de duvidosa qualidade, mas, a dada altura, já não sabemos onde a guitarra começa e o homem acaba. Ele está a tocar-se? Ou continua ainda a tocar uma guitarra? É um exibicionista? Um virtuoso?

A razão deu facilmente lugar a um exercício espiritual.

O menos assinável no tema é a voz (podem encolher os ombros). Ainda assim, o defeito é feitio mas já não é deste mundo.
Vamos relativizar as coisas e vamos pensar nos descendentes: o próprio Page, Prince, SRV, L. Kravitz, John Frusciante, Gary Clark jr. Estrelas com muito talento, sim, mas o sol é o Sol porque está mais perto de nós.

Vamos recuar aos ascendentes: Buddy Guy, Muddy Waters, T-Bone Walker, Robert Johnson. Estamos a falar de sofrimento, do blues, da África no Delta e depois para Chicago. Ele bebe o legado, respeita-o mas transfigura a coisa e faz o upgrade para o divino.  É o único tema musical deste universo que me faz chorar e rir ao mesmo tempo.




Nota: é importante mascar pastilha elástica enquanto se tece um novo salmo eléctrico. 

segunda-feira, janeiro 27, 2020

Orelhas

Já vos aconteceu irem a um café, pedirem um café e a empregada servir o café enquanto olha para a vossa boca?
Não? Sim?
Pois a mim acontece-me todos os dias.

Bom, mas hoje abriu-se uma excepção. A menina do café pousou o olhar nas minhas orelhas.
O que é que ela procurava? "Cera", restos de cotonete, um lóbulo para morder?

Dá muito nas vistas quando apreciamos as orelhas de alguém. Ou melhor, dá muito nas orelhas.
Vou pensar nisto o dia todo. Talvez passe lá daqui a pouco para pedir satisfações.
"Olhe ó menina porque é que estava a olhar para as minhas orelhas há bocado?"
...
Pensando melhor, é melhor não.

quarta-feira, janeiro 15, 2020

Castelhano - lição #34




Uma homenagem ao "cinema quinqui".
Visceral, violento, sexo, caballo, delinquência, desemprego, Fiat Ritmo, Fiat Mirafiori, roupas pré-Zara.
Sim, nem tudo era "Verão Azul" na Espanha dos anos 80.

terça-feira, janeiro 07, 2020

A voz dentro da cabeça

Em todas as histórias de heróis, há sempre um personagem que está a vigiar uma ponte, um portal, uma passagem, etc, envolto(a) numa bruma ameaçadora, misteriosa. O guardião pode ser humano (normalmente é mais velho, pode apresentar cicatrizes). Nas histórias fantásticas, poderá ser um "half breed" ou uma criatura de outra raça. Nas histórias mais verosímeis, poderá ser até a sua própria mãe, como foi o caso do nosso primeiro rei, o A.H..
E o sinal inevitável:
"Não Passarás".
Não passarás.
Não passarás, porque se o fizeres, vais morrer.
Muito raramente, nestas histórias, o herói volta para trás com medo. Porque, se o fizer, a história acaba ali. Medo. É isso de que estamos a falar não é? Do Medo com maiúscula que veste uma roupa demasiado grande para o seu verdadeiro tamanho. No entanto, é o Medo.
O herói é obrigado a combater o guardião da ponte ou decifrar um enigma, responder correctamente a uma adivinha.
O herói falha e volta a falhar. O guardião pergunta:
"Será este o teu caminho? Queres mesmo atravessar esta ponte? Vais morrer. Vais enlouquecer. Não estás preparado. Fica onde estás. Volta para trás, pobre imbecil."
E continua esta ladaínha ad nauseam, faz a mesma pergunta, vezes e vezes sem conta.
Naturalmente, o herói - porque estamos sempre a falar de um herói - ainda que possa falhar, não desiste. Como poderá desistir? É o herói de história.
Fica à espera que algo divino ocorra, faz a prece aos deuses, continua a tentar. O Tempo, embora não pareça nos primeiros tempos, é o seu maior aliado.
E, no fim, após diversas tentativas dolorosas, o herói reconhece que o guardião da ponte não é verdadeiramente o seu inimigo. E muito menos o Medo.