segunda-feira, abril 30, 2007

Lição de cinema

Lição de cinema (e não só) do mestre antes do exame final em salas escuras.

sexta-feira, abril 27, 2007

Franco-atirador

Digo-te isto a ti, e só a ti, porque sei que me entendes. Estou na mira de um franco-atirador omnipresente, bem colocado. Tenho as mãos suadas e tremo das pernas só de pensar. Aguardo pelo momento seguinte, pelo único tiro que me vai prostar sobre terra. Mas essa bala nunca é disparada, ele regozija-se ao ver-me a agonizar assim. Tu sabes, não sabes? Olho para cima, para os lados, e nada, ninguém. E vou me dobrando, aos poucos. Mais ou menos quando um homem, tu e eu, não os poetas, esses não sei quem são, nunca vi nenhum, quando um homem, dizia eu, escava, esgadanha e não encontra nada. Não há linha seguinte. Não há vasilha dourada para depositar as cinzas das palavras que traz consigo desde o dia em que nasceu. Sorte madrasta, soluçamos a vida e depois deixamos de respirar. E é tudo. Nada a alegar em nossa defesa. Sei que me entendes. Falhámos redondamente a nossa missão e depois, tarde demais. O nosso apelido torna-se inominável e todos nos viram a cara.

quarta-feira, abril 25, 2007

segunda-feira, abril 23, 2007

Tocata Patafísica Para Dois


José Damasceno

- É tudo?
- Tudo?
- Já terminaste?
- Ainda não.
- Sabes que é difícil encontrares trapézios oblíquos em bom estado, nesta altura do ano.
- Amanhã saio cedo da fábrica, ainda posso encontrá-los no mercado.
- Enfim, não podes deixar de existir até amanhã?
- Sim.
- Na tua condição de dandy dotado não te importas de fechar essa torneira dourada?
- Sim.

Farpa

Porque é que os handicaps morais têm acesso a quase tudo? A vulgaridade é cantada e exarcebada em cada canto, louva-se os fracos, queremos beber todos do mesmo bebedouro e empaturramo-nos da mesma meda de feno. O fenómeno, quase hereditário, assume proporções bem mais graves do que a neurose nacionalista, facilmente previsível em clima de recessão económica. A descultura dos ruminantes veio para ficar: confiscamos o sublime e tentamos escravizar o belo.
Tem de haver espaço para tudo, dizem alguns.
Ah pois tem, naturalmente.

quarta-feira, abril 18, 2007

171196


Ángeles Ortiz

1

Nunca morei numa rua chamada Vidro. Chutei uma vez paralelepípedos. Cada dia passava como se num espelho - de ecos. Telefones, fios. Uma vez andei de barco num lago. Nunca me vi em meu próprio reflexo. Falas, conversas-uma só figura e pessoa. Alto-falante mudo. Também morei num apartamento minúsculo. Gosto do nome das ruas de alguns amigos. Amherst, Mílvia, Sírius. Não tenho tempo para nada. Meus cabelos caíram. Talvez isto seja tudo.

2

Meus antepassados vieram da Itália. Sicília. Nápoles. Veneza. Alessandro Bonvicino - Il Moretto. Também de Ponte Vedra, na Galícia. Meus antepassados, de mãe, vieram de minas. Meu nome: meu pai tirou de um cartão de visita.


"Céu-eclipse - Poemas Selecionados", Régis Bonvicino

terça-feira, abril 17, 2007

Elevador

Mastigo ainda os flocos de cereais biológicos que surrupiei da loja onde trabalha a minha irmã. Já estou atrasado. Sou um bom ladrão. O patrão não lhe paga, logo esvazio-lhe o stock. Primo o botão do elevador. Vermelho, ocupado. Vou mesmo chegar atrasado. Desaperto a braguilha e arranjo-me. Tlin! Os dois mormons que moram no 2º Traseiras. Bom dia. Ripostei e encaixei-me num canto.
- Para onde vai?
- Menos dois, garagem.
O elevador começa a descer como só ele sabe fazer. Encontrei um ponto de fixação visual na placa de manutenção. Silêncio, afinal de contas estamos num elevador. De repente, um deles desvia o olhar e encara o outro, começando a falar em inglês. Não parece nada satisfeito. O outro mantém a postura solene e vai anuindo com a cabeça. Tlin! Zero. Saem os dois e o mais americanado diz até logo. Continuo a minha descida.

Até que ponto o uso indevido de tinta para cabelos loiros pode abalar uma equipa religiosa predestinada a existir até aos Últimos Dias?

quinta-feira, abril 12, 2007

Com quantos paus se faz um curral?



A reconsiderar seriamente o meu ganha-pão.

quarta-feira, abril 11, 2007

Conversor


Philip Evergood

Simplesmente não sei se me considere tradutor técnico ou um mero conversor. Transformo palavras aparafusadas e rebitadas em Euros. Operação tão maquinal e trituradora como a tradução do manual de uma retroescavadora coreana que tenho em mãos.
Digam-me lá o nome de um tradutor técnico* famoso.

*Não é requisito obrigatório ter formação superior.

terça-feira, abril 10, 2007

C'era una volta il West

Poi, Bronson ha detto:
- Mio corpo è una prigione!!

(Não é oficial, mas os meninos da Arcádia voltaram a fazer das suas: dessacralizaram il grand finale de Leone).

segunda-feira, abril 09, 2007

Aguardo

Aguardo pacientemente a crise de meia-estação. Tão certa como a Ressureição. Como uma colónia de ácaros que se instalou na velha carpete vermelha da avó e que não quero de modo algum desparasitar. Não sou funcional.
De olhos postos no céu azul (os anjos usam GPS?), estou na margem à espera do incansável barqueiro que traz grinaldas na barcaça em vez de bóias laranja. A brisa quente orquestra negros tambores que ribombam ao longe. Alguém puxa pelo meu casaco. A criança ao meu lado diz-me ao ouvido que este rio não tem nome e que os afluentes são lágrimas de mulheres abandonadas. A corrente é forte.

sexta-feira, abril 06, 2007

Vénus e o Pássaro


Milton Dacosta

quarta-feira, abril 04, 2007

Trabalho

são deuses invejosos e irados que se escondem debaixo das nossas secretárias, das bancadas de trabalho, que nos amaldiçoam, sabotando e maculando o nosso trabalho. Medem forças entre si em batalhas de corredores e departamentos. E como se isto não bastasse, o chefe sacrifica o mais fraco, a ignomínia pública, à frente de todos, o cheiro a carne queimada. Cada um defende-se como pode: o sensual seduz, a assexuado espalha a vulgaridade e conspira, o monoteísta esconde-se e reza na casa de banho, várias vezes ao dia.

segunda-feira, abril 02, 2007

Eu sou aquilo que falta


Hieronymus Bosch

Eu sou aquilo que falta
ao mundo em que vivo,
aquele que entre todos
jamais encontrarei.
Rodando sobre mim mesmo agora coincido
com o que me foi tirado.
Eu sou o meu eclipse
a revelia, o desconsolo
o objecto geométrico
a que para sempre deverei renunciar.


Valerio Magrelli, "A Espinha do P"
Trad. colectiva (Mateus, 1992)
Quetzal Editores