sábado, outubro 31, 2015

Em Γάλα Beach (um conto de Halloween)



As horas demoram mais tempo a passar quando estamos de férias, principalmente nos primeiros dias. Passei um pouco pelas brasas, deitei-me em cima do muro da praia e quase que apanhava um escaldão. Estava bastante cansado, a bebé não dormiu a noite inteira. De regresso ao hotel, lembrei-me da razão pela qual saí à rua. Comprar leite em pó para a bebé. O hotel era um "2 estrelas Superior", nem sequer me dei ao trabalho de perguntar na recepção se podiam dispensar um pouco de leite em pó. Voltei a sair, não podia regressar ao quarto de mãos a abanar, a minha mulher rachava-me o crânio. Havia um mercado mesmo no fundo do rua, não havia necessidade de tirar o carro do parque. O fim de tarde estava bonito, sereno, eu sentia-me cansado mas feliz. Havia ainda muita gente na praia. As crianças não paravam de gritar, algumas tinham um bigode branco e outras eram uns autênticos panados brancos. Os adultos limpavam-se imediatamente quando regressavam do mar, as toalhas ficavam todas brancas. Era engraçado ver alguns com a marca do leite até aos joelhos ou até meio da canela, pareciam que estavam a usar meias. Uma mulher bebia do buraco de uma rocha, punha as mãos em concha e sorria para o seu filho que tentava imitá-la. Entre duas linhas de barracas, descobri duas mulheres em topless deitadas. Tinham acabado de sair do leite, ainda tinham salpicos brancos espalhados pelos corpos bronzeados. Inspirei fundo. A brisa quente trazia um cheiro agradável a natas doces. 
Foi então que me caiu a ficha como se costuma dizer. Será que não poderia levar um pouco de leite marítimo para a Matildezinha? O leite em pó, conforme explicam os pediatras, é especialmente recomendado para bebés nascidos por cesariana como foi o caso da Matilde. Dizem que este bebés possuem menos recursos para combater agentes patogénicos. Já as crianças nascidas por parto normal têm mais contacto com bactérias da mãe quando nascem, o que estimula as suas defesas desde o início. Mas a Matildezinha já tem quase onze meses. A minha mulher iria estrebuchar, mas acho que não deveria fazer-lhe mal nenhum à bebé. O leite apenas teria de ser fervido.
O leite deste mar era conhecido por ter bastante cálcio. Está decidido. Só tinha de arranjar uma garrafa ou um recipiente limpo. Ouço uma ambulância, vem na minha direcção. Era o INEM local. Um grupo de mirones juntou-se no fim do quebra-mar, alguns esbracejavam e gritavam, os dois salva-vidas galgavam o areal ao sprint. Não consigo entender o que vai na cabeça das pessoas para arriscarem a vida delas assim. Só no ano passado, morreram 26 pessoas em Γάλα Beach por intolerância à lactose. 


quarta-feira, outubro 28, 2015

sexta-feira, outubro 23, 2015

Porn

Ainda morava em casa dos meus pais. Uma vez estava a ver tv no quarto e deixei ficar no canal onde o Cavaco Primeiro-ministro estava a falar. Era quase meia-noite. A sua voz grave sempre teve um efeito soporífero em mim. Não estou a querer dizer nada com isto, é apenas um pormenor biológico, se assim posso caracterizar. Nessa altura, o meu pai (que é comunista) andava a fazer o turno da noite. Não o ouvi a chegar a casa. O meu pai irrompeu pelo quarto (nunca batia à porta), fiquei todo atrapalhado, o comando caiu, as pilhas saltaram, etc. Ele olhou para o televisor, o Cavaco continuava a falar e depois olhou para mim. Não chegou a acender a luz. Por fim, lá fechou a porta e não me disse nada. Não me dirigiu a palavra durante quatro dias. Quando penso nessa noite, fico sempre com a sensação que o meu pai apanhou-me a ver um filme hard core.


terça-feira, outubro 20, 2015

Uma História Enternecedora

A dona Rosa Maria era a única idosa no lar de Santa Teresinha que tinha um animal de estimação, era um lindo canário que insultava sempre Natércia mal esta punha os pés no quarto, o pequeno alado não devia gostar de lábios descaídos.
"Olhe, mas ele não se mexe, pschiuu, ó passaroco."
"Há agora, não se mexe, está mas é a dormir, é um dorminhoco, olhe que não sai à dona, já estou a pé desde as seis e meia!", responde a dona Rosa Maria com os tendões do pescoço salientes, as pregas da pele a abanar, falava sempre com aqueles olhos arregalados que quase lhe saíam das órbitas, parecia a Gloria Swanson naquela famosa cena d’“O Crepúsculo dos Deuses” em que a actriz diz a famosa deixa All right, Mr. DeMille, I'm ready for my close-up, tinha posto pestanas falsas, as bolsas azuladas sob os olhos ocupam-lhe quase o rosto todo.
"Que pivete, ai que não se pode estar aqui, tenha lá santa paciência...Vou abrir a janela."
A velhota contorna a cama e abre o armário que estava a transbordar de roupas, já não havia espaço para um lenço, tira um casaco grosso com golas felpudas e forro à la tigresse. Natércia pega na eau de toilette que não tinha a tampa, cheira o pulverizador, faz cara feia. Junta o frasco a um cacho de perfumes que ocupava quase todo o toucador.
"Dona Rosa Maria, já fui buscar a fotografia emoldurada à loja, esqueci-me foi de a trazer para cima, depois dou-lhe quando descer, está bem?"
"Que fotografia?"
"A do falecido."
"Qual falecido?"
"Ó criatura, a fotografia do seu falecido marido, o senhor Floriano!"
"Ah. Tenho dois falecidos, rapariga, sabia lá de qual é que você estava a falar. Obrigado minha filha, depois dá-me, está bem? Olhe quanto lhe devo?"
"Não foi esse que esteve num san..."
Natércia comprime os lábios, pega na pergunta da outra para disfarçar.
"Oh já não me lembro, depois fazemos contas. Vá, saia lá que eu quero dar um jeito a este quarto."
"Já lhe contei a história do dedo? O meu Floriano era dono de três talhos, um ficava ali no Carvalhido, outro em Costa Cabral, lá no fundo, quase a chegar à Circunvalação, e outro ficava no Marquês, ele também era talhante, trabalhava no talho do Marquês, gostava muito daquilo que fazia e... Um dia ao almoço bebeu mais do que era costume e estava a cortar carne do vazio e zás!, não é que corta o dedo, do indicador, metade do dedo rola pelo cepo e cai? O meu marido aos berros, as clientes aos berros, veja lá, foi um deus nos acuda. Eu quando me lembro disto, quando o homem me chega a casa sem meio dedo...Nem queira saber a minha aflição."
"Pois, imagino…"
"Espere…ora o meu Floriano era tolo por cães, não os enxotava como a maioria das pessoas que trabalham nos cafés e nas lojas, chegou a ter problemas com a vistoria e com algumas clientes por causa disso, e, claro, à porta do talho estavam sempre meia dúzia de rafeiros à espera de restos, de ossos, pobres dos bichos, e não é que um desses cães vadios entra disparado por lá dentro e leva-lhe o dedo cortado!?"
"Virgem Maria. Já, senhora, já me contou essa história."
"...Isto foi numa quarta, por mais anos que passe aqui neste mundo,…na semana a seguir, o meu Floriano já estava no talho como se nada fosse, já não se fazem homens assim...mas espere aí que a história ainda não acabou...não é que o raio do cão, o mesmo cão que lhe roubou o dedo, aparece outra vez no talho? A menina não vai acreditar quando lhe disser o que é que ele trazia na boca!"
"O pedaço de dedo cortado, não foi?"
"Mas qual dedo, qual carapuça! Era um bocado de chispe de porco, trazia-o preso nos dentes, cheio de terra, e deslarga-o aos pés do meu falecido! A menina não acredita? O cão estica-se todo no chão, rabo entre as pernas e fica a olhar para o meu Floriano com aqueles olhinhos que os cães fazem como que a pedir desculpa. A menina cuida que o Floriano se chateou? Qual quê! Começou a fazer-lhe festinhas e ainda lhe deu um osso. Ai só mesmo o meu Floriano, Deus o tenha, o homem era doido por cães. O bicho lá deve ter ficado com remorsos....Os cães são muito finos, sabe?
"Pois são, dona Rosa Maria."

sexta-feira, outubro 16, 2015

O Túnel

Vendi ontem "O Túnel" do E. Sabato. Despachei-o porque achei-o uma desilusão. Não sublinhei nada, não fiz setas, não fiz anotações nas margens, o livro estava como novo. Foi uma transacção em mãos, a senhora pareceu-me simpática. O dinheiro deu para pagar a minha parte da peladinha das quintas. Pisei na bola (lance perigoso para golo) e bati com a caixa craniana na relva sintéctica. Fiquei meio atordoado, mas continuei a jogar. Hoje levantei-me com tonturas e decidi ir às urgências. Fiz um TAC, tudo ok. Passei a manhã toda a ver pessoas a sofrer e a queixarem-se do SNS. Numa daquelas macas deixadas no corredor, reconheci a senhora à qual tinha vendido o Sabato. Não consegui perceber o que é que lhe tinha acontecido. Estava com uma das mãos debaixo da cabeça como se estivesse deitada numa espreguiçadeira. Parecia que estava a gostar da obra que lhe vendi. Apeteceu-me regressar às urgências só para lhe perguntar o que é que ela viu no livro.

O Caminho das Garrafas


O segundo caminho para a Loja de Cima é o Caminho das Garrafas. Os vinhateiros da Ramada Alta e os donos das caves resolveram ajudar as pessoas que viviam no Monte e mandaram construir um caminho com garrafas vazias. O Caminho das Garrafas tem cerca de duzentos metros e atravessa os armazéns onde o vinho do Porto envelhece até à Loja de Cima onde os trabalhadores dos armazéns terminam o dia de trabalho a beber vinho a sério. São milhares de garrafas antigas que foram empilhadas e cimentadas e é o caminho mais usado pelas pessoas que vivem aqui. Quando parte alguma garrafa, é logo substituída por uma nova pelo responsável que é escolhido antes de fim do ano. Todos os dias, essa pessoa está encarregue de ver se há garrafas partidas ao longo do caminho, pois as pessoas que escolhem o caminho das Garrafas devem percorrê-lo sempre deitadas, é uma tradição muito antiga aqui no Monte, isto é-nos ensinado quando começamos a dar os primeiros passos. No Inverno, é bastante difícil passar pelo Caminho das Garrafas, a chuva molha as garrafas que ficam escorregadias e perigosas, podemos perder o controlo e magoar-nos contra as paredes de pedra dos armazéns, mas, no Verão, é muito agradável, gostamos de sentir o vidro quente das garrafas debaixo de nós, eu e os meus amigos passamos horas a rastejar e deslizar por cima das garrafas, serpenteamos, tocamos com os nossos corpos nos dorsos e nos gargalos das garrafas que não foram tapadas, os sexos dos mais velhos incham, os manos Guerra, o Sérgio Grande, o Pica, o Cabeças, o Jorge Tainha e os primos Baios deixam-se ficar no Caminho até o sol se pôr para depois brincarem às escondidas com o sexo nos gargalos, desejam fundir-se com as garrafas, fingem que já são adultos, gemem ali ao sol, mas fazem-no com muito cuidado, com muita delicadeza, pois as garrafas podem partir e cortar-lhes as jóias da coroa.

sexta-feira, outubro 09, 2015