A dona Rosa Maria era a única idosa no lar de Santa Teresinha que tinha um animal de estimação, era um lindo canário que insultava sempre Natércia mal esta punha os pés no quarto, o pequeno alado não devia gostar de lábios descaídos.
"Olhe, mas ele não se mexe, pschiuu, ó passaroco."
"Há agora, não se mexe, está mas é a dormir, é um dorminhoco, olhe que não sai à dona, já estou a pé desde as seis e meia!", responde a dona Rosa Maria com os tendões do pescoço salientes, as pregas da pele a abanar, falava sempre com aqueles olhos arregalados que quase lhe saíam das órbitas, parecia a Gloria Swanson naquela famosa cena d’“O Crepúsculo dos Deuses” em que a actriz diz a famosa deixa All right, Mr. DeMille, I'm ready for my close-up, tinha posto pestanas falsas, as bolsas azuladas sob os olhos ocupam-lhe quase o rosto todo.
"Que pivete, ai que não se pode estar aqui, tenha lá santa paciência...Vou abrir a janela."
A velhota contorna a cama e abre o armário que estava a transbordar de roupas, já não havia espaço para um lenço, tira um casaco grosso com golas felpudas e forro à la tigresse. Natércia pega na eau de toilette que não tinha a tampa, cheira o pulverizador, faz cara feia. Junta o frasco a um cacho de perfumes que ocupava quase todo o toucador.
"Dona Rosa Maria, já fui buscar a fotografia emoldurada à loja, esqueci-me foi de a trazer para cima, depois dou-lhe quando descer, está bem?"
"Que fotografia?"
"A do falecido."
"Qual falecido?"
"Ó criatura, a fotografia do seu falecido marido, o senhor Floriano!"
"Ah. Tenho dois falecidos, rapariga, sabia lá de qual é que você estava a falar. Obrigado minha filha, depois dá-me, está bem? Olhe quanto lhe devo?"
"Não foi esse que esteve num san..."
Natércia comprime os lábios, pega na pergunta da outra para disfarçar."Olhe, mas ele não se mexe, pschiuu, ó passaroco."
"Há agora, não se mexe, está mas é a dormir, é um dorminhoco, olhe que não sai à dona, já estou a pé desde as seis e meia!", responde a dona Rosa Maria com os tendões do pescoço salientes, as pregas da pele a abanar, falava sempre com aqueles olhos arregalados que quase lhe saíam das órbitas, parecia a Gloria Swanson naquela famosa cena d’“O Crepúsculo dos Deuses” em que a actriz diz a famosa deixa All right, Mr. DeMille, I'm ready for my close-up, tinha posto pestanas falsas, as bolsas azuladas sob os olhos ocupam-lhe quase o rosto todo.
"Que pivete, ai que não se pode estar aqui, tenha lá santa paciência...Vou abrir a janela."
A velhota contorna a cama e abre o armário que estava a transbordar de roupas, já não havia espaço para um lenço, tira um casaco grosso com golas felpudas e forro à la tigresse. Natércia pega na eau de toilette que não tinha a tampa, cheira o pulverizador, faz cara feia. Junta o frasco a um cacho de perfumes que ocupava quase todo o toucador.
"Dona Rosa Maria, já fui buscar a fotografia emoldurada à loja, esqueci-me foi de a trazer para cima, depois dou-lhe quando descer, está bem?"
"Que fotografia?"
"A do falecido."
"Qual falecido?"
"Ó criatura, a fotografia do seu falecido marido, o senhor Floriano!"
"Ah. Tenho dois falecidos, rapariga, sabia lá de qual é que você estava a falar. Obrigado minha filha, depois dá-me, está bem? Olhe quanto lhe devo?"
"Não foi esse que esteve num san..."
"Oh já não me lembro, depois fazemos contas. Vá, saia lá que eu quero dar um jeito a este quarto."
"Já lhe contei a história do dedo? O meu Floriano era dono de três talhos, um ficava ali no Carvalhido, outro em Costa Cabral, lá no fundo, quase a chegar à Circunvalação, e outro ficava no Marquês, ele também era talhante, trabalhava no talho do Marquês, gostava muito daquilo que fazia e... Um dia ao almoço bebeu mais do que era costume e estava a cortar carne do vazio e zás!, não é que corta o dedo, do indicador, metade do dedo rola pelo cepo e cai? O meu marido aos berros, as clientes aos berros, veja lá, foi um deus nos acuda. Eu quando me lembro disto, quando o homem me chega a casa sem meio dedo...Nem queira saber a minha aflição."
"Pois, imagino…"
"Espere…ora o meu Floriano era tolo por cães, não os enxotava como a maioria das pessoas que trabalham nos cafés e nas lojas, chegou a ter problemas com a vistoria e com algumas clientes por causa disso, e, claro, à porta do talho estavam sempre meia dúzia de rafeiros à espera de restos, de ossos, pobres dos bichos, e não é que um desses cães vadios entra disparado por lá dentro e leva-lhe o dedo cortado!?"
"Virgem Maria. Já, senhora, já me contou essa história."
"...Isto foi numa quarta, por mais anos que passe aqui neste mundo,…na semana a seguir, o meu Floriano já estava no talho como se nada fosse, já não se fazem homens assim...mas espere aí que a história ainda não acabou...não é que o raio do cão, o mesmo cão que lhe roubou o dedo, aparece outra vez no talho? A menina não vai acreditar quando lhe disser o que é que ele trazia na boca!"
"O pedaço de dedo cortado, não foi?"
"Mas qual dedo, qual carapuça! Era um bocado de chispe de porco, trazia-o preso nos dentes, cheio de terra, e deslarga-o aos pés do meu falecido! A menina não acredita? O cão estica-se todo no chão, rabo entre as pernas e fica a olhar para o meu Floriano com aqueles olhinhos que os cães fazem como que a pedir desculpa. A menina cuida que o Floriano se chateou? Qual quê! Começou a fazer-lhe festinhas e ainda lhe deu um osso. Ai só mesmo o meu Floriano, Deus o tenha, o homem era doido por cães. O bicho lá deve ter ficado com remorsos....Os cães são muito finos, sabe?
"Pois são, dona Rosa Maria."