quarta-feira, fevereiro 19, 2020

Sombra

Pisei hoje na sombra de alguém. Senti-me estranho e recuei uns passos no momento a seguir. Não sei porque o fiz; pisar a sombra de alguém é algo que acontece a todos nós, todos os dias, sem darmos conta. No Tahiti, se pisarmos na sombra de alguém importante (como um chefe ou um homem sagrado) somos punidos ou amaldiçoados. No livro de Chamisso, Peter Schlemihl vende a sua sombra ao diabo em troca de uma bolsa que é uma inesgotável fonte de ouro. Arrepende-se amargamente (o arrependimento tem sempre um sabor amargo), porque quando as outras pessoas vêem que Schlemihl não tem sombra, fogem, assustam-se, dizem que é o próprio diabo, etc.
Num campo mais esotérico, será legítimo pensar que a sombra é o contrário escuro da nossa aura, ou até da nossa alma? Não creio, até porque nem sequer vivem na mesma dimensão.
A sombra deveria ser uma unidade de medida  para não invadirmos o espaço do outro. Uma medida louca que nunca poderia resultar nas cidades. Funcionaria apenas em locais com pouca gente, em dias soalheiros, obviamente (parece que, em dias cinzentos, a própria sombra recolhe-se para dentro de nós). Excepto quando o outro consente, claro. Uma vez que não podemos pisar a nossa sombra, entrar na sombra do outro deveria ser considerado um convite bastante especial:
"Aproxima-te, convido-te a estares sobre a minha sombra, vamos conversar um pouco agora".