quarta-feira, agosto 03, 2005

Sena e a poesia


Wayne Thiebaud

A poesia não é essa alegria de fazer alguma coisa que nem todos os outros fazem, e que eles aliás desprezam. Não é também esse prazer enganoso de que possui com palavras o amor que lhe escapa, as coisas que não consegue, as ideias que perpassam pela sua cabeça, antes ou depois da solidão. A poesia, caríssimo, é a solidão mesma: não a que vivemos, não a que sofremos, não a que possamos imaginar, mas a solidão em si, vivendo-se à sua custa. Já pensou no que isso é (…) trairá tudo para ser fiel a si mesmo. Por ela, o senhor ficará completamente só. E, quando, de horror, penetrar lá onde supõe que o «si mesmo» está para lhe fazer companhia, verificará, em pânico, a que ponto ele não existe, ou já não existe, ou nunca existiu senão como uma miragem, ou existiu, sim, mas também o senhor o vendeu à poesia, a isso que não tem qualquer realidade senão como abstracção do que o senhor viveu ou não (…).
É isso o que pretende: ranger os dentes, mesmo postiços, pelo resto da vida ?
(…)
Sempre seu (que o manda para o inferno que é a nossa província).

Jorge de Sena, J.L., 1981
A IMPERFEIÇÃO DA FILOSOFIA, Maria Filomena Molder,
Relógio d’Água /col.Antropos, Lisboa 2003