sexta-feira, dezembro 26, 2025

Na casa dos avós

Quando era criança, passava muito tempo na casa dos meus avós maternos. Ermelinda e Joaquim eram os seus nomes. Uma das coisas que gostava de fazer era tocar e percorrer as nervuras do velho soalho da sala com a palma das mãos e com os dedos. Dava-me uma sensação de tranquilidade, não sei bem porquê. A minha avó estava na cozinha a fazer algo enquanto eu permanecia estendido com o rosto colado ao chão de madeira. Poderia ficar deitado vários minutos a afagar o velho soalho. A casa dos meus avós já tinha mais de cinquenta anos, estava cheia de manhas e histórias, mas deixava-me fazer aquelas coisas. Era interrompido pela minha avó que me pedia para trazer algo do frigorífico que estava na sala (e não na cozinha). Sempre que abria a porta pesada do frigorífico, vinha um cheiro estranho de dentro. Não era a estragado ou a podre, era cheiro a frigorífico velho. Todas as coisas velhas têm um cheiro. Sentia que o velho frigorífico não gostava muito de mim. 

Um dos objectos que mais gostava da casa dos meus avós era o velho relógio de parede. Se fosse uma pessoa, seria um daqueles senhores muito cavalheiros, muito corteses, que tiravam o chapéu sempre que passava uma senhora. Quando estava lá em casa, a minha avó pedia-me para dar corda àquele relógio. Ia buscar um banco branco (ela chamava-lhe de "mocho", não sei porquê), pois o relógio estava alto numa prateleira com alguns livros antigos. A D. Ermelinda dizia sempre que o "mocho" era traiçoeiro e para ter sempre cuidado ao descer.

Às vezes, quando estava mesmo entediado, ficava à janela a apreciar a placa das caves Ferreira, uma ema branca com uma ferradura na boca, e atrás, muito mais atrás, do outro lado do rio, o recorte dos prédios e das igrejas do Porto (durante muitos anos pensava que a ave da Ferreira era um cisne e não uma ema). O meu avô deixava o estojo de barbear no parapeito da janela por entre vasos, era aí que desfazia a barba, todas as manhãs. Eu entretinha-me a pôr a Torre dos Clérigos entre o dedo e o indicador, ou a tapar a Sé pelo pincel de barbear ou substituía o edifício moderno do JN pela gilette de aço. É claro que só fazia isto quando o Seu Joaquim não estava em casa, ele não gostava nada que lhe mexesse nas coisas de barbear.