“O que semear a perversidade segará males; e a vara da sua indignação falhará."
O homem decide levantar-se e sai para a rua às quatro e meia da madrugada. Não consegue dormir. O quarto está cheio de carneiros sem cabeça que ele contou e decapitou vezes de conta. Está de tronco nu, a chuva forte bate-lhe no peito. Arrasta os pés pelo passeio e acha-se no direito de se comportar como um doente mental. Sabe que não é superior aos outros, mas também não é nenhum zé-ninguém. Gosta apenas de testar os seus limites e é por isso que pegou num guarda-chuva antes de sair de casa, mas não o abre. Na sua mente frágil e cansada, o guarda-chuva não é um guarda-chuva, é um machado. Observa as duas árvores da sua rua; antes achava que as árvores eram um símbolo de quietude e paz, agora nem tanto. Passa um carro, o condutor olha para ele através das gotas grossas do pára-brisas e traça-lhe um diagnóstico amador naquele momento. O carro afasta-se, a luz dos faróis dilui-se na chuva que cai agora com mais intensidade. O homem sem passado atravessa a rua e começa a bater com o guarda-chuva numa das árvores. Bate, bate, bate com tanta força até partir o guarda-chuva, as varetas desfazem-se todas. O homem atira o que resta do guarda-chuva para o meio da rua. Cai sobre os joelhos como um pecador arrependido e começa a chorar como uma criança. Exausto, encosta-se no tronco molhado da ameixoeira.
O homem sem passado acorda às nove e dez da manhã, sente a cama quente. A mulher já está a vestir-se para ir trabalhar. Ela dá-lhe um beijo na testa antes de sair.
"Quem é esta mulher?"
E é sempre assim, todos os dias. Está uma linda manhã de Outono. Um cão preto ladra e os outros cães da vizinhança começam a ladrar também. Como é que o homem sem passado sabe que o cão que está a ladrar naquele momento é preto? É a única coisa que sabe naquele momento, que aquele cão é preto. "The black dog". Sente um leve aperto na garganta e diz a si mesmo que tudo vai correr bem.