domingo, dezembro 28, 2014
domingo, dezembro 21, 2014
Acta
Vivo naquilo que os franceses chamam de chambre de bonne. Partilho uma casa de banho com uma senhora que diz ser minha esposa e, volta e meia, um odradek peludo surge debaixo da cama e reclama a minha atenção. Ficamos a olhar um para o outro durante uns bons vinte minutos até ele se cansar e desaparecer. Durmo, trabalho, faço as minhas refeições nesta divisão, não sei o que se passa nos confins do meu apartamento nem no resto do mundo. Faço sequências de abdominais e Chi-kung com os olhos presos no monitor, uma americana loura diz-me como fazer os exercícios. Quando me sinto mais só ou quando quero ter a certeza de que não sou o único sobrevivente de um holocausto silencioso que me passou ao lado, levanto-me, inspiro fundo e bato várias vezes com a palma da mão na parede; o casal vizinho começa então a discutir, trocam insultos, acusam-se mutuamente, a tua mãe, isto, o teu irmão, aquilo, só queres estar com os teus amigos, quem é esta gaja que adicionaste no face, etc, etc, e, no fim, mas nem sempre, violam-se um ao outro: estão assim a cumprir escrupulosamente o Ponto 4 da acta da última reunião de condóminos.
sexta-feira, dezembro 12, 2014
O porco
O meu vizinho que mora no R/C do prédio da frente tem um porco-preto num pátio que é relativamente grande. O porco é um agente de destruição: roupa a secar, vasos, sacos de ração, bolas de futebol, mangueira, nada lhe escapa, ele fuça tudo, conspurca, espalha tudo o que pode pelo pátio. Este porquinho é um animal solitário, os donos só chegam à noite e, para além do porco, têm um cãozito, um arraçado de maltês, que está sempre metido dentro em casa e que o porco ignora imperialmente quando o outro resolve vir para o pátio ladrar-lhe. Às vezes, parece que tenho uma siderurgia ao lado de casa, é o porco a passear um velho grelhador pelo pátio, vira-o, arrasta-o, cheira-o, faz trinta por uma linha com o grelhador. Hoje, o porco acordou tarde, tem estado um frio de rachar. Quando voltei a olhar pela janela, apanhei-o a tentar acasalar com o velho grelhador. O grelhador está meio enferrujado mas acho que por agora enche as medidas ao porco. Estiveram mais de meia hora naquilo e, quando acabaram, o grelhador ficou de pernas ao alto, exausto, e o porco espraiou-se num pufe coçado em forma de uns lábios carnudos gigantes.
Não sei o que os donos tencionam fazer com o porco, não faço ideia se o animal terá um fim comestível, mas não deixa de ser irónico ver o animal a tentar f*der aquilo que é, ao fim e ao cabo, um instrumento post-mortem para os da sua espécie.
Amanhã darei mais updates sobre o porco.
Não sei o que os donos tencionam fazer com o porco, não faço ideia se o animal terá um fim comestível, mas não deixa de ser irónico ver o animal a tentar f*der aquilo que é, ao fim e ao cabo, um instrumento post-mortem para os da sua espécie.
Amanhã darei mais updates sobre o porco.
quinta-feira, dezembro 11, 2014
Na mercearia
- Tem grão-de-bico em frasco?
- Sim, tá ali na prateleira do fundo.
- E santieiros?
- Vieram ontem. Estão ao lado em baixo. E também temos WiFi agora.
- Ai sim?
- Sim.
- Qual é a pass?
- ʇMr.Picklesʇ
- Sim, tá ali na prateleira do fundo.
- E santieiros?
- Vieram ontem. Estão ao lado em baixo. E também temos WiFi agora.
- Ai sim?
- Sim.
- Qual é a pass?
- ʇMr.Picklesʇ
quarta-feira, dezembro 10, 2014
quinta-feira, novembro 27, 2014
O desenho
Desde que começou o quarto minguante que um desenho bizarro tem sido projectado no quintal pouco cuidado da minha cabeça. Eu sei de onde é que isto vem. Foi durante a minha estadia em Hakone, Japão, há cinco meses. Fiquei na altura um pouco surpreendido com o pequeno acto de vandalismo, pouco habitual entre os japoneses. Vi um desenho feito com um objecto cortante, uma faca ou um canivete, na porta da casa de banho de uma estância termal bastante popular entre a população sénior japonesa. Era um polvo sem olhos, cujos tentáculos disparavam espermatezóides gigantes (quase do tamanho do próprio polvo) que, por sua vez, gritavam em uníssono (balão aos ziguezagues) "!!!MAGICO BEANOS!!", assim mesmo, numa variante de inglês ajaponesado, antes de entrarem numa coisa gravada no canto superior da porta que tanto poderia representar uma vulva ou um lírio - creio que a leitura daquela parte de desenho depende sempre de quem a vê.
terça-feira, novembro 25, 2014
Juro que não tem nada a ver
Primeira Parte - Sócrates apresenta a sua defesa
I. O que vós, cidadãos atenienses, haveis sentido, com o manejo dos meus acusadores, não sei; certo é que eu, devido a eles, quase me esquecia de mim mesmo, tão persuasivamente falavam. Contudo, não disseram, eu o afirmo, nada de verdadeiro. Mas, entre as muitas mentiras que divulgaram, uma, acima de todas, eu admiro: aquela pela qual disseram que deveis ter cuidado para não serdes enganados por mim, como homem hábil no falar. (...)
"Apologia de Sócrates" de Platão
quinta-feira, novembro 20, 2014
sexta-feira, novembro 14, 2014
Louro quer graveto
Quando tudo acabar, isto é, quando a nação colapsar e a língua morrer - seja aqui, nesta marquise virada para o mar, seja num país minúsculo e branqueado, entalado entre a França e a Alemanha - irão restar apenas papagaios que irão reproduzir a nossa língua para linguistas e outros interessados.
quinta-feira, novembro 13, 2014
segunda-feira, novembro 10, 2014
Tenho de cortar as meias-de-leite
Jarry começava o dia a consumir dois litros de vinho branco e, de seguida, três absintos entre as dez horas e o meio-dia; na hora de almoço, regava o peixe ou o bife com tinto e branco alternando com mais absintos. Na parte da tarde, algumas chávenas de café misturadas com conhaque ou outras espirituosas cujos nomes já não me lembro; depois, ao jantar - ao qual se seguia, naturalmente, mais aperitivos - ainda conseguia beber, pelo menos, duas garrafas de qualquer vintage, bom ou mau.
Agora, eu nunca o vi bêbado.
Alfred Jarry: A Pataphysical Life, Alastair Brotchi
quinta-feira, novembro 06, 2014
A morte difícil
Crevel: "Vá, corta-me."
Faca: "Não. És demasiado bonito, demasiado duro para te cortar. És o pior pesadelo de uma faca."
Crevel: "Não me deixas alternativas. Vou apanhar o primeiro barco para a ilha de Jerséi, há muitas facas lá à procura de trabalho."
Faca: "Estás a dizer-me adeus?"
Crevel vira-lhe as costas, a Faca hesita, mas não faz nada. Crevel bate com violência a porta.
Faca fica imóvel durante uma hora a olhar para a porta. Depois, espeta a cabeça contra um coração de boi que estava em cima da mesa da cozinha.
Os Sofrimentos do Jovem Werther
Goethe: Já não sonho mais com nuvens. Faz hoje uma semana que só sonho com mulheres. Acordo sempre muito cansado. Mas a partir de agora só quero sonhar com mulheres.
Werther: E quem são essas mulheres, Johann?
Goethe: Todas as mulheres que amei nesta vida, desejo sonhar com todas elas, de A a Z.
Werther: (pequena pausa, hesitante)
Goethe: Não te inibas, podes perguntar-me tudo, Werther.
Werther: São assim tantas?
Goethe: Creio que sim, ainda só vou na letra B.
terça-feira, novembro 04, 2014
segunda-feira, outubro 27, 2014
quarta-feira, outubro 22, 2014
quarta-feira, outubro 15, 2014
segunda-feira, outubro 06, 2014
quarta-feira, outubro 01, 2014
terça-feira, setembro 30, 2014
quinta-feira, setembro 25, 2014
quarta-feira, setembro 24, 2014
A vida é mesmo assim
O corredor aproxima-se da linha da meta e resolve abrandar a passada, a vitória está garantida, o rosto alagado estica-se e um sorriso enche-lhe a cara toda. Ergue os braços magrinhos e faz com os dedos um V de vitória para a multidão. Ah, esperem, não há multidão, não há pessoas a assistir à corrida, é uma prova particular num pavilhão fechado ao público, é patrocinada por um daqueles magnatas excêntricos. Um outro corredor, que tudo indica irá receber prata, está a menos de dez segundos, mas não parece conformado, alarga a passada, aumenta o ritmo, abre a bocarra para engolir o máximo de ar possível, vê o adversário a cortar a meta, mas não desiste, continua a correr, a correr, parece um doido a fugir do manicómio, dir-se-ia mesmo que tem fogo no cu. Ultrapassa o "vencedor" que fica a olhar para ele muito espantado com as mãos sobre as pernas, está exausto. O outro mostra-lhe o dedo do meio. Não é possível. Claro, ainda falta fazer mais uma volta! Caramba, que azar, que estupidez. A criança afinal vai nascer com olhos azuis e vai ter o nariz do pai. Escusado será dizer que o falso vencedor ficou cá com umas trompas...
segunda-feira, setembro 22, 2014
História
Gostavas de ter começado a contar a tua história mais cedo, não gostavas? Quando a tua cabeça ainda não estava cheia de porcarias e coisas inúteis, não era? Pois mal. Tarde demais. Já não vais a tempo, não tentes recuperar o tempo perdido, uma migalhita aqui, uma fatia ressequida acolá, de nada serve. As histórias querem-se frescas como as alfaces. Não tenho paciência para velhos contadores de histórias que contam velhas fábulas que não interessam ao menino jesus. Bom, diga-se de passagem, não pareces muito preocupado. Agora fica quieto e calado enquanto eu conto a minha. Quando terminar, podes fazer com ela o que bem entenderes. Ah, queres saber o nome da história? Eu digo-te então. I am the walrus.
sexta-feira, setembro 19, 2014
As chaves
Ontem saí à pressa de casa e esqueci-me das chaves no lado de dentro da porta. Felizmente tinha o telemóvel comigo e o número das "Chaves Santo Ovídio" gravado na agenda. São um pouco careiros, mas trabalham bem e pedem logo o NIF sem perguntarem se é preciso a factura com o NIF. Como ninguém me atendia, tive de me dirigir à loja, fica a menos de dez minutos de onde eu moro. A minha mulher ia chegar com os catraios e não podia abrir a porta com as minhas chaves metidas no lado de dentro da fechadura. Bom. À minha frente estava um senhor de idade, careca, barba branca, hirsuta. Trazia uma túnica cinza e coçada e umas sandálias à pescador como agora se usa.
- Olha, diz lá quanto é que te devo - perguntou o tal senhor de idade com uma voz grave. Pesava um grande molho de chaves na mão e acenava com a cabeça, muito satisfeito.
- Vá lá à sua vida, depois fazemos contas.
- Isto não é assim, diz lá quanto é.
- Ó chefe, pel'amor de Deus. Vá lá à sua vida, já lhe disse. Eu depois passo lá e paga-me um café.
- Pronto, tá combinado. Dá cá um bacalhau.
O senhor de idade virou-se de repente e deu-me um encontrão, eu estava mesmo atrás dele.
- Ó, desculpe.
- Não tem mal.
O homem esfumou-se mal pôs o pé na rua. Eu estava meio constipado, este tempo é terrível para as constipações, mas consegui sentir um cheiro a peixe por toda a loja.
- Olha, diz lá quanto é que te devo - perguntou o tal senhor de idade com uma voz grave. Pesava um grande molho de chaves na mão e acenava com a cabeça, muito satisfeito.
- Vá lá à sua vida, depois fazemos contas.
- Isto não é assim, diz lá quanto é.
- Ó chefe, pel'amor de Deus. Vá lá à sua vida, já lhe disse. Eu depois passo lá e paga-me um café.
- Pronto, tá combinado. Dá cá um bacalhau.
O senhor de idade virou-se de repente e deu-me um encontrão, eu estava mesmo atrás dele.
- Ó, desculpe.
- Não tem mal.
O homem esfumou-se mal pôs o pé na rua. Eu estava meio constipado, este tempo é terrível para as constipações, mas consegui sentir um cheiro a peixe por toda a loja.
terça-feira, setembro 16, 2014
terça-feira, setembro 09, 2014
O belo António
Já que toda a gente parece saber um pouco sobre Kafka, vou também falar sobre Kafka. Kafka passou uma temporada em Itália. Esteve na Sicília, na pedra que a "bota" chuta há milhões de anos. A pedra parece não se importar de tão dura que é. Para sobreviver, o escritor trabalhou como figurante no filme "Il bell'Antonio" rodado na Catania, apaixonou-se um pouco por Claudia Cardinalli durante as filmagens e deu dicas de representação ao próprio Mastroianni que encarnou o papel de um homem atraente, apoiante febril do Fascismo, adorado por todas as mulheres da cidade, mas que, no fundo,...ou melhor dizendo, no meio, era sexualmente impotente. Uma espécie de alegoria.
quinta-feira, agosto 28, 2014
Cláusulas
- O nosso corpo é como uma ampulheta. Temos de fazer o pino de vez em quando para que as ideias acumuladas nos pés regressem à cabeça.
- O Rei Ubu nasceu quando a mãe de A. Jarry lhe pediu para ir colher mirtilos ao bosque e ele chegou a casa com o cesto cheio de tâmaras. Em França não ha tamareiras.
- A minha mulher gosta que eu durma com mitenes. Diz ela que lhe faz lembrar a sua ama quando a embalava.
- Na minha aldeia usam cascas de caracóis em vez de telhas e as pessoas têm os olhos muito salientes.
- O nosso primeiro faz lipoaspiração e doa a massa adiposa a fábricas de sabonetes. O povo deveria queixar-se menos.
- O serviço de apoio ao cliente da Igreja deixa muito a desejar.
- O meu segredo com as mulheres é este: um pouco de água salgada no pulso esquerdo e um pouco de água com açúcar no pulso direito.
- Os miúdos da catequese adoram o novo padre. Em vez do fazer o sinal de cruz, ele passa a missa a desliza o anelar no ar como se estivesse a usar um smartphone.
- Uma vez vi dois homens abraçados na Ponta de Sagres. Foi numa excursão da escola; era pequeno na altura, mas tenho a vaga ideia que um chamava-se Infante e o outro Henrique.
- As pessoas cospem para o chão para que nasçam cuspideiras. A madeira é boa para fazer consolas e aparadores. A polpa do fruto é usada por uma conhecida marca de sumos.
- Os homens-bomba auferem de bons salários. Mas se não forem pontuais, o empregador pode recusar a prestação do dia de trabalho e, se for prática recorrente, podem ser despedidos por justa causa.
- Enquanto estofador, tenho um ódio de estimação: Soeiro Pereira Gomes.
- Gosto de fazer pequenas bolinhas com o cotão que tiro do meu rego. Depois atiro aos pardais que usam-no para fazer os ninhos. Faço parte do ecossistema.
- Ao contrário do que se diz por aí, Mishima nunca pôs os pés em Andorra.
- Perdi a cabeça quando me apaixonei pela quarta vez. Nunca mais voltei a encontrá-la.
- Quando chega o fim do mês, tenho sempre a sensação que vários príncipes e princesas vivem à minha custa.
- O meu gato está tão grande, tão grande, que pega com os dentes pelo meu cachaço para me dar comida.
- A democracia em Portugal é mágica. Coelhos que saem da cartola e portas que andam por esse mundo fora.
- Tenho amigos que cheiram a estábulos e já não é de agora.
quarta-feira, agosto 13, 2014
terça-feira, agosto 12, 2014
Rev. Alban Butler |
"Quando estava sozinho, ele lia; quando estava com alguém, ele lia; às refeições, ele lia; nas suas caminhadas, ele lia; quando ia numa carruagem, ele lia; quando andava a cavalo, ele lia; fosse o que fosse, ele lia."
Charles Butler (sobrinho de Alban Butler)
terça-feira, julho 29, 2014
sexta-feira, julho 18, 2014
Espanhóis
Porque é que os espanhóis fazem a siesta? Eu digo-vos porquê. Para se parecerem connosco, com os por.tu.gue.ses. Sim senhor, é isso mesmo, leram bem. É este vosso criado que vos diz, sem rodeios, sem paninhos quentes. Passei muito tempo a levar com eles, sei como aquela gente pensa. Quando estão acordados, falam a berrar, urram, esbrancejam como criancinhas que querem chamar à atenção dos pais. Fazem birras se nós aqui ao lado não lhes damos atenção. Temos de lhes dizer "si si carino" na língua primitiva deles, caso contrário não nos entendem. É como eu digo ou não é? E então sonham connosco quando dormitam depois do gaspacho ou rabo de touro ou lá o que eles comem. Querem roubar-nos o fado, inventaram o flamengo para se mostrarem superiores, o flamengo é uma espécie de fado mais espanhafatoso, vê-se logo que aquela jactância toda é a fingir, é só teatro. Coitadinhos, são tão teatrais os nuestros hermanos. Olhem para cima, para os galegos, querem a toda a força pertencer a este lindo rectângulo. Ouçam. Não se riam. Eles, os espanhóis, sonham ser meditabundos e introspectivos como nós, obedientes e afáveis como nós, enfim, adultos. Desejam ainda ser bem parecidos e vestirem-se bem como nós, é por isso que andam sempre engalanados todos os dias como se fossem à missa. E mais. Desejam as nossas mulheres, querem amá-las porque sabem que são fogosas na cama e ladies na mesa - já as mulheres deles são o oposto. Ai não sabem? Ah ha. Uh hu. Pois é isto, sem tirar nem por. Repito, meus amigos, sei do que falo e mais não digo porque não quero ferir susceptibilidades. Antes de mais nada, sou português, ora aqui têm o meu cartão, um criado ao vosso dispor.
sábado, julho 12, 2014
sábado, junho 14, 2014
O pergaminho de Kaikidan Ekotoba
Homem com testículos gigantescos |
À distância de 9 fusos horários. Nem só de sushi e tempura vive o homem.
terça-feira, junho 10, 2014
10 de Junho
eu desfaleço
tu desfaleces
Ele desfalece
nós desfalecemos
vós desfaleceis
eles desfalecem
(apenas a relembrar a conjugação do Pres. Indic. de um verbo terminado em -er)
tu desfaleces
Ele desfalece
nós desfalecemos
vós desfaleceis
eles desfalecem
(apenas a relembrar a conjugação do Pres. Indic. de um verbo terminado em -er)
terça-feira, maio 27, 2014
quinta-feira, maio 15, 2014
segunda-feira, maio 12, 2014
Saída limpa mas com barba
Conchita Wurst deveria ter representado Portugal na Eurovisão. Aliás, vou mais longe: o tema que interpretou, "Rise like a phoenix", deveria substituir o nosso hino, é mais do que adequado para o momento de euforia económica que o país vive.
sábado, maio 10, 2014
Jack
"(...) A minha mãe tem de mandar chamar o médico de vez em quando e eu pago. Nem te falo dos dentistas para mim e outras pessoas. Mencionarei de passagem as várias centenas de dólares que o advogado de Bessie me extorquiu. E poderia continuar por mais uma meia dúzia de páginas abençoadas a recitar o caminho que seguiu o meu dinheiro. Ontem, por exemplo, mandei um queque de 10 dólares para apoiar um novo jornal socialista que luta para se manter em Toledo, Ohio. (...)"
Cartas de Jack London, Antígona
Sim, o velho Jack piscava os dois olhos ao socialismo e gostava de beber o seu copito de vez em quando. Se calhar, foi por isso que enviou um "queque" para apoiar o tal jornal em vez de um "cheque". Vem mesmo assim na edição da Antígona (página 174). Acho que esta "gralha" arrebita bastante esta carta de London.
domingo, maio 04, 2014
Já passava da hora de jantar
Já passava da hora de jantar quando entraram numa povoação que parecia deserta. Os lampiões de carboneto da única rua digna desse nome começaram a ter espasmos, as sombras tiveram de trepar pelas paredes como baratas para se esconderem no fundo dos telhados, atrás dos beirais; se por acaso alguém andasse àquela hora na rua, as sombras rastejariam pelas paredes acima e usariam o transeunte noctívago como escudo para se protegerem da luz dos lampiões. Foi o que fizeram com os dois irmãos.
Dirigiram-se à única taberna na rua principal que parecia estar aberta. Mal desencostaram a porta levaram em cheio com uma pesada baforada de carrascão misturado com o cheiro de pêlo molhado de sabujo e de flatulências mais ou menos descaradas - seria impossível ao mais experiente dos narizes apurar qual era a fragrância dominante. Não tinham grande escolha. Deram as boas noites e sentaram-se. Pediram uma garrafa de retsina e algo para comer. É sabido que o álcool ajuda a libertar o espírito, e o irmão mais velho deixou escapar um sorriso para Teseu que não parava de tagarelar. Orestes não estava a prestar-lhe atenção, ou melhor, parecia estar a olhar para o irmão pela primeira vez. O caçula "não via nem à direita, nem à esquerda, nem mais além", mas não seria por isso que iria deixar de o amar. Para além dos dois irmãos e do taberneiro, havia apenas mais dois clientes que estavam sentados na mesa atrás. Antes dos dois irmãos entrarem, o mais novo estava a palitar os dentes com uma faca, enquanto o outro, de cinto desapertado para dar tréguas à pança, assoava-se com método: abria o lenço e olhava para a pasta húmida e reluzente para garimpar o que tinha saído de dentro de si. Apesar de tudo, observavam algumas regras básicas de etiqueta: não bocejaram à mesa nem nunca cuspiram para o chão durante o tempo que estiveram debaixo daquele tecto. Quando os dois irmãos ocuparam a mesa à frente da sua, pararam de fazer o que estavam a fazer e tomaram as medidas aos estranhos; o mais velho acabou o copo, arqueou a sobrancelha e berrou:
– Boas noites! Parecem cansados! Vêm de muito longe, os cavalheiros? – perguntou enquanto coçava o joelho gordo.
Dirigiram-se à única taberna na rua principal que parecia estar aberta. Mal desencostaram a porta levaram em cheio com uma pesada baforada de carrascão misturado com o cheiro de pêlo molhado de sabujo e de flatulências mais ou menos descaradas - seria impossível ao mais experiente dos narizes apurar qual era a fragrância dominante. Não tinham grande escolha. Deram as boas noites e sentaram-se. Pediram uma garrafa de retsina e algo para comer. É sabido que o álcool ajuda a libertar o espírito, e o irmão mais velho deixou escapar um sorriso para Teseu que não parava de tagarelar. Orestes não estava a prestar-lhe atenção, ou melhor, parecia estar a olhar para o irmão pela primeira vez. O caçula "não via nem à direita, nem à esquerda, nem mais além", mas não seria por isso que iria deixar de o amar. Para além dos dois irmãos e do taberneiro, havia apenas mais dois clientes que estavam sentados na mesa atrás. Antes dos dois irmãos entrarem, o mais novo estava a palitar os dentes com uma faca, enquanto o outro, de cinto desapertado para dar tréguas à pança, assoava-se com método: abria o lenço e olhava para a pasta húmida e reluzente para garimpar o que tinha saído de dentro de si. Apesar de tudo, observavam algumas regras básicas de etiqueta: não bocejaram à mesa nem nunca cuspiram para o chão durante o tempo que estiveram debaixo daquele tecto. Quando os dois irmãos ocuparam a mesa à frente da sua, pararam de fazer o que estavam a fazer e tomaram as medidas aos estranhos; o mais velho acabou o copo, arqueou a sobrancelha e berrou:
– Boas noites! Parecem cansados! Vêm de muito longe, os cavalheiros? – perguntou enquanto coçava o joelho gordo.
sábado, abril 26, 2014
sexta-feira, abril 25, 2014
quinta-feira, abril 24, 2014
Vinte e quatro
Aqui está o lar, já chegamos.
Os dois vieram em silêncio o caminho todo, Madalena ia já no segundo cigarro, não há nada melhor do que um cigarrinho depois de uma bem dada...Não, não, não, esperem aí. Acho que não foi nada uma bem dada, e aposto que ela também não, quem é que com dezassete, dezoite aninhos dá uma bem dada? O efebo que ia ali ao seu lado deixou de ser virgem naquele fim de tarde, mas a quarentona não sabia, talvez desconfiasse, ela não lhe perguntou, foi tudo muito rápido, há coisa de quinze minutos, ali no banco de trás de um carro, como nos tempos do liceu, só que desta vez foi num daqueles lotes para construção abandonados, parecia um cenário pós-apocalíptico. Estavam resguardados pela muralha de vegetação, pelas plumas invasoras, o outdoor mais à frente prometia vivendas de sonho, o Paraíso das Areias já estava desbotado, as pontas do papel descolavam nos cantos do cartaz. Um carro com um pneu suplente montado faz-me lembrar sempre uma pessoa a usar um sapato dois números mais abaixo do que o outro. Estacionou o Astra ao lado de um contentor cheio de entulho, havia lenços de papel usados semeados aqui e ali, as placas de betão no chão estavam emolduradas por ervas daninhas.
A ela interessava-lhe apenas esquecer o seu último caso, um refinado cabrãozito, colega de profissão, casado também, o gajo tinha língua de mel, quando estavam os dois sozinhos, contorciam-se um no outro, violavam-se mutuamente, violavam todas as leis da física, começavam num canto do quarto do motel e acabam noutro canto a suar por todos os poros do corpo, tinha que apagá-lo da cabeça, de dentro de si, as coisas ainda iam acabar mal. Ali o jovem era um sinal e teria de servir por enquanto, sentiu-lhe o fogo nas entranhas, tal como ela, mas era um fogo descontrolado, inexperiente, quase inocente.
Jura-me que aquilo que aconteceu vai ficar entre nós.
A terrível sensação de dejá vu, outra vez. Deve ser a frase mais usada pelos amantes.(...)
sábado, abril 12, 2014
quarta-feira, abril 09, 2014
quarta-feira, abril 02, 2014
terça-feira, abril 01, 2014
(...) Havia um muro alto com cacos de vidro que protegia o terreno da casa. Contornou-o. Viu uma estrada mais à frente da qual saía um caminho para a entrada que não tinha portão. Entrou. O caminho de acesso tinha marcas de pneus e era bordejado por moitas, petúnias, rododendros e beladonas; o terreiro estava coberto de cascalho e no meio havia um poço de bordas baixas cujo guincho estava debruado por heras. Um Mercedes preto coberto de poeira estava estacionado no lado direito da casa. Aproximou-se do carro, limpou o vidro com a manga do casaco e olhou lá para dentro. Havia apenas uma pasta em cima do banco do passageiro. Depois, pôs-se à frente do capô; não resistiu e enfiou três dedos por entre os raios da famosa insígnia e sentiu um pequeno arrepio de prazer. Voltou para trás. A fachada da casa era esquadrejada por duas janelas estreitas de perfis vermelhos no piso superior e parecia mais modesta vista de perto. Em cima da porta de entrada havia uma inscrição em relevo que dizia ἑταίραι.
Orestes deu dois passos à caranguejo. Não sabia o que fazer, não estava à espera daquilo. As risadas deram lugar a gemidos que vinham do piso de cima e conseguiu distinguir ainda uma voz masculina mais grave, pausada, seguida de estertores abafados como se ele ou ela estivessem em profunda agonia.
Tocou na sineta da entrada cujo badalo tinha uma forma fálica. No vitral da porta figurava uma mulher deitada numa lit de repos em pose convidativa. Orestes sentiu vontade de passar os dedos pelo vitral, mas, nesse momento, a porta abriu-se lentamente. Sacudiu a poeira do casaco e das calças e lá entrou meio a medo. A cor cinza da sua roupa puída contrastava com os fortes tons carmins do papel de parede e do tapete vermelho do vestíbulo. Sentiu-se um pato, não, talvez um peru que fora convidado para uma festa de gala do conde pavão (...)
Orestes deu dois passos à caranguejo. Não sabia o que fazer, não estava à espera daquilo. As risadas deram lugar a gemidos que vinham do piso de cima e conseguiu distinguir ainda uma voz masculina mais grave, pausada, seguida de estertores abafados como se ele ou ela estivessem em profunda agonia.
Tocou na sineta da entrada cujo badalo tinha uma forma fálica. No vitral da porta figurava uma mulher deitada numa lit de repos em pose convidativa. Orestes sentiu vontade de passar os dedos pelo vitral, mas, nesse momento, a porta abriu-se lentamente. Sacudiu a poeira do casaco e das calças e lá entrou meio a medo. A cor cinza da sua roupa puída contrastava com os fortes tons carmins do papel de parede e do tapete vermelho do vestíbulo. Sentiu-se um pato, não, talvez um peru que fora convidado para uma festa de gala do conde pavão (...)
quarta-feira, março 26, 2014
segunda-feira, março 10, 2014
quinta-feira, fevereiro 27, 2014
Rota das Letras
Fui um dos vencedores do II Concurso de Contos Rota das Letras.
O meu conto "Diário dos últimos dias do Coronel Vicente Nicolau de Mesquita" será publicado em três línguas - Português, Chinês e Inglês.
Sendo eu tradutor de profissão (adoro pleonasmos), tenho bastante curiosidade em ver as versões traduzidas, principalmente a versão chinesa.
Estou muito feliz, obrigado.
quarta-feira, fevereiro 26, 2014
terça-feira, fevereiro 25, 2014
Quinze
O auxiliar deixa-se cair pesadamente no único lugar livre do banco de plástico e dá um longo suspiro para que os outros dois sentissem um pouquinho a sua dor. Um dos homens acena-lhe com a cabeça como se o conhecesse e continua a conversa.
Tinha dito à minha catraia que queria ir ver os primeiros raios do sol do ano, sabe como são as mulheres, queria impressioná-la, ano novo, vida nova, não queria meter a pata na poça como fiz com as outras...ela ficou toda excitada, lá se vestiu à pressa, ainda estava com as cuequinhas novas do ano novo, que sonho, meu Deus, e vai daí, saímos pela garagem privada, estes gajos dos móteis pensam em tudo, metemo-nos no carro e fomos até à serra de Santa Justa. Já lá foi? É muito bonito, muito verdinho. Mas eis que quando chego a meio, não é que o caralho do motor começa a gaguejar e a deitar fumo por tudo quanto é lado? Saí, tava frio pra caralho, abri o capô. Que fumarada, meu Deus, e vou a ver, era a junta da colaça que tinha queimado, falta de água, tá a ver? E eu, ah puta que pariu que não tenho sorte nenhuma. E agora? Qual era o reboque que me vinha buscar o jeep na madrugada do primeiro dia do ano, ali no meio do monte? E...
Senhor Alfredo Ferreira?
Parreira, Parreira, emenda o homem.
Oh, Parreira, sim, desculpe. Faz favor.
Tava a ver que não. Não vou gritar como o colega que acabou de sair, pois não, seu doutora?
A médica que veio à porta era novinha, tinha um ar simpático, aponta com a mão para o interior da sala. O outro homem, mais velho, bate com o indicador na têmpora como que a dizer que o outro não jogava com o baralho todo, era maluco.
Aquele corredor era um desfile de voluntárias, auxiliares, administrativas, enfermeiros e enfermeiras, médicos e médicas. Sempre que passava uma mais jeitosa, o velhote descruzava os braços, seguia o derrière da senhora com o olhar e depois coçava o cachaço ou as narinas, ou então passava as mãos pelo tecido das calças; queria que o jovem sentado ao lado dele fosse cúmplice naquela sua avaliação, o velhote estava empenhado em fecundar com o seu olhar azul maroto as mulheres que por ali cirandavam, mas, claro, a idade não perdoa, sozinho não dava conta do recado. Mas o auxiliar nem sequer piscava os olhos, estava a olhar em frente para a porta, esperava pela sua vez, parecia uma daquelas estátuas dos faraós sentados com as mãos em cima das pernas. O velhote, ao aperceber-se que o moço não estava para ali virado, apoiou os cotovelos no joelhos e tapou a cara com as manápulas.
Ai meu deus, meu deus, gemeu ele baixinho.
Deus devia estar atento: assim que o sénior acaba de invocar o Seu nome, a porta do consultório abre-se e uma luz cor de pérola é despejada sobre aquela ovelha. O contador da história de Santa Justa sai disparado, parecia que ia tirar o pai da forca.
Sr. Avelino Correia?, alguém gritou do consultório.
O velhote pega num envelope grande e salta lá para dentro já com outro ânimo. (...)
quinta-feira, fevereiro 20, 2014
terça-feira, fevereiro 11, 2014
sexta-feira, fevereiro 07, 2014
quinta-feira, fevereiro 06, 2014
segunda-feira, janeiro 27, 2014
Stiv Stiv Stiv
I'm so sick of T.V.
You know, I'm getting bored of the tube
I'm so sick of romance
And I'm gettin' real sick of you
Stiv Bators tinha definitivamente o factor X.
You know, I'm getting bored of the tube
I'm so sick of romance
And I'm gettin' real sick of you
Stiv Bators tinha definitivamente o factor X.
sábado, janeiro 25, 2014
DEZ
Empurra, mais rápido, mais rápido!
A noiva não queria que a festa acabasse, queria continuar a divertir-se, roubou então a cadeira de rodas dobrável da Transit, sentou-se nela e agora estava no meio da rua a ser empurrada por uma das amigas que era talvez a mais feia e a menos bêbada, andavam as duas a correr, isto é, a noiva sentada na cadeira de rodas que pertencia à Dona Conceição e a feia a empurrá-la em frente ao Estado Novo às cinco horas da manha. As outras quatro berravam do passeio, batiam palmas, saltavam em cima dos tacões, uma delas caíu redonda no chão molhado e desatou a rir-se. Estavam podres de bêbadas, tinha sido a despedida de solteira de amiga e ainda queriam ir não sei para onde. A prima do auxiliar tinha-lhe pedido boleia há dois dias, sabia que iam se enfrascar nessa noite, sabia também que o primo era mau condutor, mas preferia um mau condutor sóbrio que andasse continuamente em segunda a um bom condutor bêbado que se esbarrasse na primeira curva.O auxiliar teve de pedir a Transit à doutora Maria dos Anjos ao que ela acedeu desde que ele enchesse de novo o depósito.
Entendeu bem? Atestar o depósito, não se esqueça, repetiu e depois bateu palmas duas vezes para ele sair do gabinete. A relação que a doutora Maria dos Anjos tinha com o auxiliar, seu funcionário, fazia lembrar o tipo de relação que um columbófilo tem com os seus pombos-correio, o auxiliar estava amestrado com palmas, afinal ele foi trabalhar para o lar de idosos muito novo, devia obediência à chefe, ela apiedou-se dele quando ninguém o fizera, e a criatura, para retribuir, era o leva-e-traz de tudo o que se passava no lar, só faltava fazer vénias à senhora directora. Natércia, a outra auxiliar, mulher afogueada mas muito íntegra - apesar do beiço descaído - desprezava-o ainda mais por isso.
De volta às perigosas e imprevisíveis ruas de Matosos. Um dos porteiros, um armário que impunha respeito, pediu educamente às moças para se afastarem da entrada e uma delas, que era talvez a mais atraente, tinha cara de menina travessa, madeixas vermelhas bem feitas, olhinhos verdes pequeninos, sôfregos por uma ou duas bem dadas, começou a rebolar-se em cima de um daqueles pilares de acesso à entrada, puxou a saia para cima exibindo a coxa de pequena bailarina e começou a ronronar para ele. O porteiro olhou para ela com desejo, mas conteve-se. As outras estavam encostadas à parede e tinham a mão na barriga de tanto rir, riam-se até às lágrimas, não sabiam para onde haviam de olhar, se para a amiga que parecia ter uma tocha a arder no meio das pernas, se para a noiva na cadeira de rodas que era empurrada pela amiga de um lado para outro. Naquele momento, estavam a sair dois magalas e um deles pergunta à amiga provocadora:
É hoje, filha?
Ela tirou a máscara de repente, baixou a saia, não gostou do convite, o porteiro era um homem a sério, além de ser uma espécie de Apolo de Rio Tinto (cabelo rapado, careca luzidia, sem os longos cabelos do deus), era um velho conhecido de outros carnavais, enquanto que aquele pirralho ainda cheirava a leite, não ia admitir aquela falta de respeito e então puxou a carteira atrás mas falhou o alvo, estava bêbada demais para ser certeira, o rapaz desviou-se facilmente do golpe como um gato. O magala ficou muito sério a olhar para ela, não gostou nada daquilo, mas viu pelo canto do olho o porteiro a tirar-lhe as medidas e lá foi à vida dele com o amigo, deixando um rasto de insultos atrás de si dirigidos à amiga da prima e à sua respectiva mãe. O auxiliar continuava dentro da furgoneta com as mãos no volante, já tinha ligado a ignição, estava a acelerar em ponto-morto para a velha Transit não ir abaixo, uma fumarada de todo o tamanho pairava sob a rua molhada.
A noiva e a "aia" estavam agora mais ao fundo da rua, estavam paradas no semáforo vermelho para os carros, que meninas mais marotas, quem havia de dizer, o que o álcool faz a meninas bem comportadas, a blusa da noiva descaía e via-se quase um seio inteiro, se o noivo aparecesse ali naquele momento, não sei se haveria casório, a noiva era tão dócil, tão amorosa, tão atinada... A aia, isto é, a feia, ajeitou os óculos de massa cor-de-rosa e disse à noiva que era melhor voltar para trás. Um BMW branco em sentido contrário (também estava à espera que o sinal mudasse) começou a dar-lhes máximos.
O que é que aquele gajo quer? Anda lá, empurra, empurra, Sónia!
Mas está vermelho, é melhor...
Empurra-me caralho! Vou casar-me para a semana, anda lá!, a sua voz conseguia ser pastosa e determinada ao mesmo tempo e Sónia fazia todas as vontades às amigas, era uma paz de alma como se costuma dizer. A feia olhou para trás, a prima do auxiliar estava a fazer-lhe sinais para voltarem. Sónia, porém, cumpriu o desejo da noiva, empurrou a cadeira de rodas com a nubente, o sinal ainda vermelho, e a meio do cruzamento, aparece pela direita um Ibiza preto a alta velocidade, o condutor ainda tenta travar, mas o piso estava escorregadio, e Sónia, num acto de incomensurável bravura, num gesto de pura amizade e altruísmo, empurra a cadeira de rodas para a frente para salvar a sua amiga que se ia casar para a semana e esta dá uma gargalhada e exclama "sim, sim, assim sim", estava tão bêbada que nem deu conta da aproximação lateral do carro que embate contra a sua aia, não vê a sua amiga Sónia que lhe faz todas as vontades a ser projectada pelos ares, não vê os óculos de massa cor de rosa em câmara lenta a voarem, as lentes fundo de garrafa a aumentarem a lua cheia, uma lua pesada e luminosa, enfim, a noiva bêbada não ouve os gritos das amigas lá atrás. O auxiliar, esse, não saíu da Transit, nem sequer olhou pelo retrovisor (estava virado para o mar), lá deve ter adormecido embalado pelo motor ligado. Ou então achou que era mais uma das pantominices histéricas das moças e não fez caso, ou pior, o auxiliar era mesmo uma ameba, um seguidor de Pilatos e fez de conta que não era nada com ele. Quando conto este episódio triste e lamentável, lembro-me sempre - e só Deus sabe como me penitencio por isso - do título daquele livro de Vernon Sullivan, "Morte aos Feios".
quinta-feira, janeiro 23, 2014
segunda-feira, janeiro 20, 2014
Subscrever:
Mensagens (Atom)