domingo, maio 04, 2014

Já passava da hora de jantar

Já passava da hora de jantar quando entraram numa povoação que parecia deserta. Os lampiões de carboneto da única rua digna desse nome começaram a ter espasmos, as sombras tiveram de trepar pelas paredes como baratas para se esconderem no fundo dos telhados, atrás dos beirais; se por acaso alguém andasse àquela hora na rua, as sombras rastejariam pelas paredes acima e usariam o transeunte noctívago como escudo para se protegerem da luz dos lampiões. Foi o que fizeram com os dois irmãos.
Dirigiram-se à única taberna na rua principal que parecia estar aberta. Mal desencostaram a porta levaram em cheio com uma pesada baforada de carrascão misturado com o cheiro de pêlo molhado de sabujo e de flatulências mais ou menos descaradas - seria impossível ao mais experiente dos narizes apurar qual era a fragrância dominante. Não tinham grande escolha. Deram as boas noites e sentaram-se. Pediram uma garrafa de retsina e algo para comer. É sabido que o álcool ajuda a libertar o espírito, e o irmão mais velho deixou escapar um sorriso para Teseu que não parava de tagarelar. Orestes não estava a prestar-lhe atenção, ou melhor, parecia estar a olhar para o irmão pela primeira vez. O caçula "não via nem à direita, nem à esquerda, nem mais além", mas não seria por isso que iria deixar de o amar. Para além dos dois irmãos e do taberneiro, havia apenas mais dois clientes que estavam sentados na mesa atrás. Antes dos dois irmãos entrarem, o mais novo estava a palitar os dentes com uma faca, enquanto o outro, de cinto desapertado para dar tréguas à pança, assoava-se com método: abria o lenço e olhava para a pasta húmida e reluzente para garimpar o que tinha saído de dentro de si. Apesar de tudo, observavam algumas regras básicas de etiqueta: não bocejaram à mesa nem nunca cuspiram para o chão durante o tempo que estiveram debaixo daquele tecto. Quando os dois irmãos ocuparam a mesa à frente da sua, pararam de fazer o que estavam a fazer e tomaram as medidas aos estranhos; o mais velho acabou o copo, arqueou a sobrancelha e berrou:
– Boas noites! Parecem cansados! Vêm de muito longe, os cavalheiros? – perguntou enquanto coçava o joelho gordo.