terça-feira, março 31, 2020

Total Condicionamento

Hora de esticar as pernas no terraço. Dou trinta voltas e conto cinquenta e duas lajes. Faço uma série de burpees e outra de agachamentos. Ao som da Dua Lipa, a diva pop do momento. Na verdade, não me posso queixar.
"Sou um sortudo, apesar de tudo", penso.
Nem todos têm o privilégio de ter um espaço exterior como este. Do outro lado das divisórias de vidro, estende-se um espaço verde que pode ser frequentado pelos outros condóminos, mas raramente vejo lá alguém.
Estico-me todo até doer cada órgão, cada membro do meu corpo. Tento romper todos os bloqueios, alinhar-me, o meu cérebro é uma folha de papel riscada por uma criança. Centenas de riscos pretos em todas as direcções, novelos de linhas, ziguezagues sobrepostos. Tento fechar as gavetas mentais que não interessam, mas no momento seguinte os fantasmas voltam a abri-las.
A morrinha da manhã alivia um pouco a coisa. Tento focar-me no presente como agora é moda fazê-lo. E o que é o Presente? Uma pandemia, o presente do universo para recalibrar a nossa espécie. Milhares de mortes "and still counting".
Penso na velhice. Esta semana notei que tinha vários pontos vermelhos nos braços e no tronco. Não existiam no mês passado. Sabem do que estou a falar? Há quem diga que são marcas de karma, uma manifestação do sobrenatural no corpo. Fazer projecções do espírito é muito fácil para mim. Quero acreditar em algo.
O meu toddler chama-me de dentro da casa, chama-me para a realidade. Está em modo permanente de "Appetite  for destruction". Ou "A petit for destruction" A eloquência dos seus gritos comove-me até aos nervos. Nervos, leram bem. Não deve ser nada fácil para ele também. Piso em legos e puzles espalhados por todo o lado e multiplico "caralhos" pela casa fora.
Vou à janela da frente para ver se a jovem do 2º do prédio oposto já está na varanda. É um relógio. Às 11:00, senta-se num cadeirão de vime tipo "Emmanuelle" e lê um tablet. Tem um corpo de quem pratica "Total condicionamento" ou "Spartans". Às vezes, tem a companhia de uma amiga que está quase sempre de máscara. Hoje não está lá ninguém. A morrinha, claro.
Penso e repenso.
"Sou um sortudo, apesar de tudo."

Não perguntem


terça-feira, março 24, 2020

Viagens

1. Frigyes Karinth estava sentado numa esplanada de Budapeste a tomar o seu café habitual. De um momento para o outro, começou a escutar o som de locomotivas a passar. O ruído característico escalou de um nível moderado para quase insuportável. Já não era uma, mas várias locomotivas que atormentavam Frigyes. Ora Budapeste já não tinha eléctricos há já alguns anos e a estação ferroviária ainda ficava bastante longe. Frigyes começava a sofrer de halucinações auditivas. Sacks, o famoso neurologista melómano, fez o prefácio desta obra incrível.
O livro chama-se "Uma viagem à volta do meu crânio" (minha tradução, dado que ainda não existe edição em PT) e é um relato na primeira pessoa da degenerescência neurológica do próprio Frigyes.

2. Há uma outra viagem que que poderá ter um efeito terapêutico (ou até profilático) durante as próximas semanas.
Aqui vai um cheirinho de "Viagem à volta do meu quarto":

«Quando viajo no meu quarto, raramente percorro uma linha recta: vou da mesa até um quadro que está colocado a um canto; daí parto em diagonal até à porta; mas ainda que, ao partir, a minha intenção seja a de me dirigir para lá, se encontro a poltrona no caminho não estou com cerimónias e instalo-me de imediato nela.»

Este excerto evidencia o "cinturão negro literário" que era Xavier De Maistre. A descrição de um percurso banal, mais do que mecânico, torna-se no relato de uma jornada que descasca cada centímetro de um espaço limitado. O tom é temperado pela influência óbvia de Laurence Sterne, claro está.
O autor, Xavier de Maistre, foi detido por duelo (viveu no século XVIII) e condenado a 42 dias de prisão domiciliária. O que resulta dessa prisão é este pequeno grande livro.

Talvez faça algum sentido (re)ler estas duas obras durante os tempos que correm para engraçar e atenuar potenciais neuroses e ansiedades.





sexta-feira, março 20, 2020

Eu e o Conde de Monte Cristo

No início desta "coisa" que estamos a viver, associava a pandemia a obras distópicas ou pós-apocalipse. Era muito fácil. Estou a lembrar-me, assim de repente, de autores como Ballard ("High-Rise" salta logo à vista), Philip K. Dick, Bradbury, a própria Margaret Atwood, etc.
De repente, a realidade alternativa cai-nos em cheio no regaço e não sabemos bem o que fazer com ela. O problema deixa de ser exclusivamente chinês. Fala-se em inimigo invisível, prateleiras de papel higiénico esfumam-se, o pânico instala-se.

Entretanto, os dias em semi-reclusão monástica ou em estado de "ermita digital" desenrolam-se - muito lentamente - e vive-se, de uma forma ou de outra. A luz ao fundo do túnel varia em função do pessimismo de cada um (e do news feed) e dou por mim a pensar cada vez mais naquela obra que marcou o início da chamada idade adulta: "O Conde de Monte Cristo".

Edmund Dantés, o protagonista, passa treze anos na prisão do Castelo d'If, sendo punido injustamente por um crime que não cometeu. A liberdade é-lhe retirada.

Bem sei que a nossa liberdade não nos foi retirada, embora estejamos praticamente confinados à nossa casa, ao nosso Castelo d'If privado. Estamos condicionados pelo Estado de Emergência declarado.
Mas o que me faz pensar na obra de Dumas, não é tanto o tópico da liberdade. É um outro personagem da obra e aquilo que ele representa para mim, neste momento: o Abade Faria, o companheiro de cela de Dantés que será o seu mestre para várias artes e ofícios, a sua bolha de oxigénio, a esperança em tempo de reclusão.

No meu caso e, neste momento, o Abade Faria consegue simbolizar muita coisa: a minha família mais próxima, as pessoas que olham para mim na rua (tentando escrutinar se tenho ou não o vírus, uma espécie de paranóia colectiva ainda inofensiva). Também consegue abarcar o meu Consciente e o meu Inconsciente. A reclusão por tempo indeterminado lança esta força incrível que não podemos deixar de confrontar: a nossa mente.

É uma excelente oportunidade para limpar a cave e o sotão mentais. Não é fácil, mas algum dia teria de ser feito. É um botão "Reset" que nos é fornecido por um vírus que ainda tem "coroa", mas que -  tenho quase a certeza - vai ser derrotado. Infelizmente, a vitória terá um preço bastante elevado, de milhares de vidas.

Não vou terminar com a frase prevísivel e estereotipada "seria bom se aprendêssemos a lição que este vírus nos está a dar, com esta situação limite que estamos a viver, etc., etc." porque seria de muito mau gosto. Todos sabemos que as coisas não são assim tão simples. Aprender demora tempo, às vezes várias gerações. Somos bem mais complicados do que os vírus.

terça-feira, março 17, 2020

Vivendo do Ócio - Nostalgia










É possível ter saudades de um sítio onde nunca se esteve?


Com um pouco de Vinicius lá pelo meio:

Eu sou como o velho barco que guarda no seu bojo o eterno ruído do mar batendo
No entanto como está longe o mar e como é dura a terra sob mim...
Felizes são os pássaros que chegam mais cedo que eu à suprema fraqueza
E que, voando, caem, pequenos e abençoados, nos parques onde a primavera é eterna.

domingo, março 15, 2020

Médico da peste

Doctor Schnabel (em pt., Dr. Bico), um dos médicos
da peste negra, séc. XVII

quinta-feira, março 05, 2020

José



O José é um ser pensante. O que é que eu quero dizer com isto? Que o José gosta de pensar muito e às vezes não escuta aquilo o que algumas pessoas designam de "a voz do coração". Não, eu não sou o José. Às vezes, os escritores projectam a sua voz através de um personagem, mas não é este o caso. Eu não sou um ser pensante no sentido mais "puro" da palavra. Dou por mim a escutar a voz do meu coração. Para ser verdadeiramente honesto convosco e comigo, sou um ser híbrido: escuto tanto a voz da minha mente como escuto a voz do meu coração.
Mas voltemos ao José.
O José tem o chamado "rio de pensamentos" dentro da cabeça. E sofre um pouco com isso. É um rio muito caudaloso. A sua barragem mental foi mal concebida e agora é tarde de mais. A cabeça do José apresenta várias fissuras e não consegue controlar os pensamentos que escapam rio abaixo. E é um rio estranho este. O José confessou-me (somos amigos de há longa data) que, de vez em quando, achava que era um cachimbo e que estava a ser fumado pelo próprio pai. E isto não é nada. Noutro dia, disse-me que era também recorrente pensar que, num destes dias, vai acordar com uma hiena a seu lado. 
Estes são apenas dois exemplos dos pensamentos do José. 
Naturalmente, José é um nome fictício. Usei este nome para proteger a identidade do meu querido amigo.