quinta-feira, julho 19, 2007

Ética


Edgar Degas

Chego em frente do mar, das suas ondas,
das marés que setembro enfurece, dos cinzentos
e azuis que alternam com verdes estranhos;
uma voz trata da loucura, ou do olhar vazio
dos peixes, ou de um tema ressequido como as algas
da maré baixa; um vento percorreu a praia,
no silêncio da tarde, devolvendo ao corpo das águas
uma unidade antiga. O mar, no entanto, supõe
que o esqueçam. Nos seus fundos dormem as imagens
que o sonho já não guarda; braços que se agarram
aos mastros do naufrágio. Um barco abstracto
passou devagar pelo horizonte que a manhã não viu,
entrando no outro lado da terra, esquecido
por instantes da música dos portos. O poema, disseram-me,
ignorou essa distracção: atravessou
o limite da eternidade, vestiu-se com as palavras
nocturnas, deixou que a morte o contaminasse.
À beira-mar, não dou por isso; e digo-o,
devagar, repetindo em voz baixa
todas as suas contradições.

Nuno Júdice in "Um canto na espessura do tempo"
Quetzal, 1992