segunda-feira, julho 30, 2007
Syrinx, Ficção Pastoral (I)
Sophie Calle
Vou pôr um anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
Que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro de água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.
in "Quatro caprichos", António Franco Alexandre
Assírio & Alvim, 1999
domingo, julho 29, 2007
Gabrielle d'Annunzio
Arthur Dove
Em 1898, Vitoria Bini, filha mais nova de um velho casal de condição humilde, encontrou uma pequena peça de tapeçaria enquanto brincava numa solitária praia da região de Abruzzo. Apesar do mau estado de conservação do tecido, a menina identificou de imediato o cocuruto de Gabrielle d'Annunzio. A peça remonta ao séc. II a.c. e tudo indica que três mastins negros tentaram dilacerá-la para evitar o advento do nacionalismo italiano nos anos 20. D'Annunzio emerge do mar em pose messiânica e aponta com os indicadores para os dois pedaços de terra separados pela água. O(a) autor(a) emprega habilmente o sfumato (técnica normalmente associada à pintura), tirando partido das características do tecido. Em último plano, são ainda representados negros que dançam na terra queimada por um sol carmim, de dimensões desproporcionadas, enquanto que, na margem esquerda, figuram vários artíficies que sustentam uma enorme e intrigante ratazana cinzenta que parece estar a saudar o poeta.
quinta-feira, julho 26, 2007
Do Amor
Nancy Spero
Um homem sensível e franco, um antigo cavalheiro fazia-me esta noite uma confidência (no fundo do nosso barco batido pela tempestade no lago de Grade) da história dos seus amores, história cuja confidência não porei a público, mas da qual me creio com direito a extrair a conclusão de que o momento da intimidade é como os belos dias do mês de maio, um momento que pode ser fatal e manchar num instante as mais lisonjeiras esperanças.
in "Do Amor", Stendhal,
Trad.: Adriano Vale
Portugal Press
terça-feira, julho 24, 2007
Palavras II
Outra das causas possíveis do excesso ou falta de ideias - que tem vindo a assumir contornos preocupantes e irreversíveis no meu caso - está relacionada com a substituição da velha lâmpada azul-cobalto situada no fundo da língua. A lâmpada é uma peça essencial. As palavras podem sair com visíveis deficiências ou podem se apresentar difusas e redundantes. Não há um controlo rigoroso, os novos símbolos não são repostos quando apresentam indícios de desgaste intenso. O trabalho árido não é um motivo válido para o cumprimento desta instrução.
O facto dos anjos e demónios andarem arredados das suas obrigações também não ajuda muito. É da sua exclusiva responsabilidade aplicarem a pressão devida quando untam massa lubrificante na fronte e no coração em 10 ciclos sucessivos para, no fim do processo, se incorporarem no paciente ou criador.
Assim, o contrato que celebramos à nascença com Deus e representantes acima referidos não é respeitado, assiste-nos o direito de exigir uma rescisão.
- Fim?
O facto dos anjos e demónios andarem arredados das suas obrigações também não ajuda muito. É da sua exclusiva responsabilidade aplicarem a pressão devida quando untam massa lubrificante na fronte e no coração em 10 ciclos sucessivos para, no fim do processo, se incorporarem no paciente ou criador.
Assim, o contrato que celebramos à nascença com Deus e representantes acima referidos não é respeitado, assiste-nos o direito de exigir uma rescisão.
- Fim?
segunda-feira, julho 23, 2007
Palavras
As palavras são nómadas, ciganas, têm de vir e partir. Não podemos aprisioná-las durante muito tempo no mesmo sítio. Não gosto do conceito de eternidade, de perenidade absoluta neste universo, tudo está em constante movimento. Parece-me que, neste momento, elas estão de partida e sei que tenho de aguardar pela próxima vaga, não adianta procurá-las. Pode ser a espera de uma vida e posso muito bem enganar-me com amostras para satisfazer apenas a minha vaidade ou obter prazer imediato.
quinta-feira, julho 19, 2007
Ética
Edgar Degas
Chego em frente do mar, das suas ondas,
das marés que setembro enfurece, dos cinzentos
e azuis que alternam com verdes estranhos;
uma voz trata da loucura, ou do olhar vazio
dos peixes, ou de um tema ressequido como as algas
da maré baixa; um vento percorreu a praia,
no silêncio da tarde, devolvendo ao corpo das águas
uma unidade antiga. O mar, no entanto, supõe
que o esqueçam. Nos seus fundos dormem as imagens
que o sonho já não guarda; braços que se agarram
aos mastros do naufrágio. Um barco abstracto
passou devagar pelo horizonte que a manhã não viu,
entrando no outro lado da terra, esquecido
por instantes da música dos portos. O poema, disseram-me,
ignorou essa distracção: atravessou
o limite da eternidade, vestiu-se com as palavras
nocturnas, deixou que a morte o contaminasse.
À beira-mar, não dou por isso; e digo-o,
devagar, repetindo em voz baixa
todas as suas contradições.
das marés que setembro enfurece, dos cinzentos
e azuis que alternam com verdes estranhos;
uma voz trata da loucura, ou do olhar vazio
dos peixes, ou de um tema ressequido como as algas
da maré baixa; um vento percorreu a praia,
no silêncio da tarde, devolvendo ao corpo das águas
uma unidade antiga. O mar, no entanto, supõe
que o esqueçam. Nos seus fundos dormem as imagens
que o sonho já não guarda; braços que se agarram
aos mastros do naufrágio. Um barco abstracto
passou devagar pelo horizonte que a manhã não viu,
entrando no outro lado da terra, esquecido
por instantes da música dos portos. O poema, disseram-me,
ignorou essa distracção: atravessou
o limite da eternidade, vestiu-se com as palavras
nocturnas, deixou que a morte o contaminasse.
À beira-mar, não dou por isso; e digo-o,
devagar, repetindo em voz baixa
todas as suas contradições.
Nuno Júdice in "Um canto na espessura do tempo"
Quetzal, 1992
segunda-feira, julho 16, 2007
Que grande medo temos, tu e eu
Franz Kline
Que grande medo temos, tu e eu,
Seu boquinha de raia, amigo meu!
Oh, como se esfarela este tabaco,
Quebra-nozes compincha, meu velhaco!
E eu podia ter assobiado a vida,
A bolinho de noz acompanhada,
Pois, mas não pode ser nada...
Ossip Mandelstam, "Guarda Minha Fala Para Sempre"
Trad.: Nina Guerra, Filipe Guerra
Assírio & Alvim
Cúmplice
Todos os dias são cometidos assassínios morais e éticos no local de trabalho. Acenas com cabeça. Aconteceu a Beltrano, ao noviço que entrou há duas semanas e não fizeste nada. Mereces então o pouco salário que ganhas, pois é bem mais grave ficar na sombra a assistir impavidamente, a encolher os ombros e deixar esses criminosos incólumes. Não te cabe a ti, não queres aborrecimentos para o teu lado ou expor-te de alguma maneira, porque podes ser alvo de retaliação? Acreditas que, mais cedo ou mais tarde, tudo será resolvido, confias na sapiência do teu chefe ou na justiça divina. Acreditas em Deus que não dorme nos dias úteis e só descansa aos domingos, e confias nos chefes e supervisores que têm os olhos vendados, tal como a Justiça?
Naturalmente, se, amanhã, acontecer o mesmo a ti, nada terás a recear.
Naturalmente, se, amanhã, acontecer o mesmo a ti, nada terás a recear.
domingo, julho 15, 2007
Everyday
Claude Cahun
This is the coastal town
That they forgot to close down
Armageddon - come armageddon
Everyday is like sunday
Mosu - No Reino das Mulheres
A minoria étnica Mosu é um subgrupo dos Naxi (uma das 55 etnias chinesas), um povo de pastores nómadas originário do Tibete que vive nas margens do belo lago Lugu, na remota província de Yunnan.
O casamento é um "sacramento" inexistente entre os Mosu. As azhu (uniões livres) podem durar uma vida inteira e até ser monogâmicas, mas estão abertas a vários relacionamentos, livres de qualquer compromisso marital ou financeiro. Os homens vivem na casa materna durante o dia e passam a noite na casa das amantes ou namoradas (axia). A relação termina quando ele deixa de a procurar ou ela se recusa a dar-lhe abrigo nocturno. Esta liberdade sexual, praticada ao longo de séculos, foi banida durante a Revolução Cultural. Os Mosu foram obrigados a constituir famílias "normais". Quando as coisas acalmaram, os casais separaram-se, voltando aos velhos hábitos. Todas as crianças estão sob a custódia das mulheres e herdam o seu apelido de família. As mulheres supervisionam todos os assuntos domésticos, desde as finanças à produção agrícola. No entanto, tudo é partilhado. Não há registo de crimes.
Os Mosu possuem um velho idioma pictográfico com cerca 1000 anos. Não existe um termo para "guerra". As designações adquirem mais força quando a palavra "mulher" é acrescentada, fortalecendo o significado: por exemplo, "pedra" mais "mulher" significa "rochedo" ou "penedo", enquanto que "pedra" associada a "homem" significa "calhau", "seixo".
O casamento é um "sacramento" inexistente entre os Mosu. As azhu (uniões livres) podem durar uma vida inteira e até ser monogâmicas, mas estão abertas a vários relacionamentos, livres de qualquer compromisso marital ou financeiro. Os homens vivem na casa materna durante o dia e passam a noite na casa das amantes ou namoradas (axia). A relação termina quando ele deixa de a procurar ou ela se recusa a dar-lhe abrigo nocturno. Esta liberdade sexual, praticada ao longo de séculos, foi banida durante a Revolução Cultural. Os Mosu foram obrigados a constituir famílias "normais". Quando as coisas acalmaram, os casais separaram-se, voltando aos velhos hábitos. Todas as crianças estão sob a custódia das mulheres e herdam o seu apelido de família. As mulheres supervisionam todos os assuntos domésticos, desde as finanças à produção agrícola. No entanto, tudo é partilhado. Não há registo de crimes.
Os Mosu possuem um velho idioma pictográfico com cerca 1000 anos. Não existe um termo para "guerra". As designações adquirem mais força quando a palavra "mulher" é acrescentada, fortalecendo o significado: por exemplo, "pedra" mais "mulher" significa "rochedo" ou "penedo", enquanto que "pedra" associada a "homem" significa "calhau", "seixo".
sexta-feira, julho 13, 2007
Proofreading DAV-X10/YIT_M643-38S-B
Antes de ligar o cabo de alimentação CA deste aparelho a uma tomada de parede, ligue todas as colunas ao aparelho quando se trabalha há muitos anos com os mesmos colegas na mesma empresa , acabamos por assimilar tiques singulares, certos trejeitos do colega do lado, a halitose do M. que morde clips a toda a hora já não nos causa repulsa, a F. da logística vai entrar entre hoje e amanhã na red zone e não nos traz o chãzinho de menta do costume, o departamento inteiro boceja em coro às 10.27h, já não pedimos desculpa pelo pequeno arroto involuntário, partilhamos o mesmo bioritmo, só falta darmos as mãos para ir ao WC ao mesmo tempo, homens e senhoras, em procissão mariana, acho que estou a ficar com o lábio leporino do A., perguntamos ao fumador compulsivo porque não foi soltar hoje uma fumaça lá fora, a mulher pediu divórcio, logo divorciamo-nos todos e oferecemos, solidários, aquilo o que não temos e aquilo que eles nunca tiveram, Patrão em viagem de negócios, dia santo na loja, produtividade desce para metade, somos cruéis com o elemento mais fraco, mas já não há paciência para o seu mau gosto musical, arranjamos o colarinho e esticamos as gravatas dos trezentos que compramos ontem depois do expediente, que coincidência, por aqui, para obter os melhores resultados, observe o seguinte:
– Coloque ambas as colunas com uma distância entre si igual à distância em relação à posição de audição (de modo a formar um triângulo isósceles).
– As colunas frontais devem ser colocadas com uma distância entre si de 0,6 m.
- Não deixe um espaço em frente às colunas frontais quando colocadas numa mesa ou estante, etc., por causa do reflexo.
– Coloque ambas as colunas com uma distância entre si igual à distância em relação à posição de audição (de modo a formar um triângulo isósceles).
– As colunas frontais devem ser colocadas com uma distância entre si de 0,6 m.
- Não deixe um espaço em frente às colunas frontais quando colocadas numa mesa ou estante, etc., por causa do reflexo.
Greve patafísica
Cildo Meireles
As senhoritas trouxeram as sombrinhas, perfeito. Podiam esperar cá fora. Estava determinado nessa manhã, mãos à obra, não havia tempo a perder. Chega finalmente o patrão.
- Posso saber o que está a fazer?
- Estou a assentar tijolos na entrada, não é bom de ver?
- Mas você está doido?! Assim ninguém pode trabalhar!
- Oiça bem. Antes de vir para aqui, besuntei manteiga nos cantos da boca e na ponta da língua para que as palavras deslizassem melhor. Estavam presas dentro de mim. Agora, basta. Aconselho-o a estar calado. Quer ser útil? Chegue-me esse saco de cimento de 10 Kg que diz Pascal Pia.
- Este? O Pasc.. O quê?! Vou chamar a minha mãe e ela vai chamar o meu advogado.
- Pois vá.
- Palerma! O homem ensandeceu de vez. Isto não fica assim, ouviu?
As estagiárias não sabiam o que fazer, estavam horrorizadas. Tudo isto era inédito. O chefe de produção foi buscar uma cadeira de baloiço à carroça e começou a fazer tricot. Ia ser pai daqui a uns meses, mas a mulher ainda não sabia.
Pouco tempo depois aparece a mãe. Advogado nem vê-lo:
- Mãe, és tu? - interroguei-lhe, enquanto limpava a fronte com um lenço.
- Sr. P! Já lhe disse que eu não sou sua mãe!
- Então nada feito. Retire-se, por favor.
A mulher ficou ensimesmada durante alguns instantes, voltou-se para trás e pregou um sonoro tabefe no filho verdadeiro. Deu um pontapé no balde, virou costas e começou a caminhar em passos curtos e ligeiros, muito senhora de si. O meu patrão ficou incrédulo e paralisado com a mão na face. Antes de entrar no carro, a pobre escorregou e caiu em cima de uma poça esverdeada.
- Que campesina, alguém disse baixinho.
Levantou-se um forte rajada de vento vinda do mar. O céu estava coberto de gaivotas que não paravam de grasnar.
- As gaivotas grasnam, sr. P?
- Chega-me esse tijolo fúcsia que diz "The End".
- Tenho de lhe confessar uma coisa, chefe.
- Sim?
quarta-feira, julho 11, 2007
Em Busca do Tempo Perdido
Ontem foi o 66º aniversário da minha querida tia Adelaide, irmã da minha mãe. Marcel Proust nasceu também a 10 de Julho. São ambos nativos de Caranguejo, primeiro decanato. São um poço sem fundo de emoções e não perdem uma oportunidade para verter a lágrima. A minha tia é catequista e recusa-se terminantemente a celebrar o seu aniversário com Marcel, pois desaprova por completo a sua tradução d' A Bíblia de Amiens de J. Ruskin.
Continuo a gostar muito dos dois.
terça-feira, julho 10, 2007
Os Doidos de Vila Nova
N'A Doida do Candal, Camilo descreve Vila Nova, o sítio onde cresci, como a maior taberna do mundo, asquerosa, cheia de becos imundos, que dá vinho a todo o mundo. Entre uma e outra cheia, inalei, em miúdo, quantidades bastante elevadas de gases libertados pelo vinho do Porto que escorria abundantemente em tintos regatos pela Calçada das Freiras (ou R. Serpa Pinto) abaixo. Mais tarde, turistas gordos americanos exclamariam, fascinados:
- Gee, it's amazing, the wine just grows up in the streets here!
A mãe e a avó falavam-me com alguma nostalgia dos carros de bois que transportavam as enormes pipas de carvalho cheias de vinho. Os pobres dos animais eram brutalmente vergastados enquanto galgavam a íngreme calçada até chegarem aos velhos armazéns. Depois vieram os ruidosos camiões com as cubas metálicas, os Leyland e os Mercedes, provenientes da Régua, largando fumos mortais e inúmeras moedas de chumbo. A avó mandava-me então recolher esses cunhos para vender à Gracindinha, a farrapeira da R. das Sete Passadas. Creio que hoje poderíamos designá-la de técnica do ambiente ou algo parecido. A senhora aparecia sempre sorridente por entre colunas empilhadas de cartão bafiento. É provável que também inalasse acidentalmente vapores de vinho. As paredes esburacadas da loja estavam revestidas aqui e ali por velhas embalagens de fertilizantes agrícolas e cartazes vintage sedutores de várias companhias vinícolas. Os cantos no tecto estavam remendados com teias de aranha centenárias das quais não conseguia desviar o olhar enquanto esperava pela Gracindinha. A Rua das Sete Passadas tem cerca de setenta, oitenta metros de extensão, nem a cavalo seria possível percorrê-la em apenas sete passadas. Toponímia feita por gigantes. Ou por bêbedos, sim.
De tanto snifar vinho, por volta dos meus dez, onze anos, já distinguia as subtis nuances entre o bouquet frutado e prometedor de um vintage e o aroma aveludado, corpulento de um velho tawny. Não estou a exagerar. Posso apresentar-vos aos meus amigos de infância que não me deixam mentir. Alguns ainda estão vivos, outros simplesmente não quiseram seguir a nobre pisada dos pais, enólogos de tasca, e prefiram a poeira ao vinho. Muito antes da febre dos desportos radicais, já faziam bungee jumping do tabuleiro superior da ponte sem cordão. Infelizmente, a ressaca era tão pesada que muitos batiam no fundo e só vinham à tona várias horas depois, nas margens da Afurada ou da Cantareira. De facto, há duas décadas atrás, as únicas riquezas dos lugares de Vila Nova e Sta. Marinha que rivalizavam com o vinho do Porto eram a heroína e a coca que se consumia desenfreadamente nos becos imundos de que falava Camilo. Os garrotes e as rolhas.
N'A Doida do Candal, Camilo descreve Vila Nova, o sítio onde cresci, como a maior taberna do mundo, asquerosa, cheia de becos imundos, que dá vinho a todo o mundo. Entre uma e outra cheia, inalei, em miúdo, quantidades bastante elevadas de gases libertados pelo vinho do Porto que escorria abundantemente em tintos regatos pela Calçada das Freiras (ou R. Serpa Pinto) abaixo. Mais tarde, turistas gordos americanos exclamariam, fascinados:
- Gee, it's amazing, the wine just grows up in the streets here!
A mãe e a avó falavam-me com alguma nostalgia dos carros de bois que transportavam as enormes pipas de carvalho cheias de vinho. Os pobres dos animais eram brutalmente vergastados enquanto galgavam a íngreme calçada até chegarem aos velhos armazéns. Depois vieram os ruidosos camiões com as cubas metálicas, os Leyland e os Mercedes, provenientes da Régua, largando fumos mortais e inúmeras moedas de chumbo. A avó mandava-me então recolher esses cunhos para vender à Gracindinha, a farrapeira da R. das Sete Passadas. Creio que hoje poderíamos designá-la de técnica do ambiente ou algo parecido. A senhora aparecia sempre sorridente por entre colunas empilhadas de cartão bafiento. É provável que também inalasse acidentalmente vapores de vinho. As paredes esburacadas da loja estavam revestidas aqui e ali por velhas embalagens de fertilizantes agrícolas e cartazes vintage sedutores de várias companhias vinícolas. Os cantos no tecto estavam remendados com teias de aranha centenárias das quais não conseguia desviar o olhar enquanto esperava pela Gracindinha. A Rua das Sete Passadas tem cerca de setenta, oitenta metros de extensão, nem a cavalo seria possível percorrê-la em apenas sete passadas. Toponímia feita por gigantes. Ou por bêbedos, sim.
De tanto snifar vinho, por volta dos meus dez, onze anos, já distinguia as subtis nuances entre o bouquet frutado e prometedor de um vintage e o aroma aveludado, corpulento de um velho tawny. Não estou a exagerar. Posso apresentar-vos aos meus amigos de infância que não me deixam mentir. Alguns ainda estão vivos, outros simplesmente não quiseram seguir a nobre pisada dos pais, enólogos de tasca, e prefiram a poeira ao vinho. Muito antes da febre dos desportos radicais, já faziam bungee jumping do tabuleiro superior da ponte sem cordão. Infelizmente, a ressaca era tão pesada que muitos batiam no fundo e só vinham à tona várias horas depois, nas margens da Afurada ou da Cantareira. De facto, há duas décadas atrás, as únicas riquezas dos lugares de Vila Nova e Sta. Marinha que rivalizavam com o vinho do Porto eram a heroína e a coca que se consumia desenfreadamente nos becos imundos de que falava Camilo. Os garrotes e as rolhas.
segunda-feira, julho 09, 2007
A Revolução n"Os Doze"
Capa do livro "Teatro" de A. Blok (1909)
(...)
V
Tens uma cicatriz no pescoço,
Kátia, a cicatriz de uma facada.
No peito, Kátia,
tens uma unhada fresca!
Eh, eh, dança!
Que pernas tão bonitas!
Levavas roupas de rendas;
por que não agora?
Fodias com oficiais,
por que não agora?
Fode, fode!
O coração salta-me no peito!
Recordas, Kátia, aquele oficial,
Que não se salvou da navalha…
Não te lembras dele?
Ou não tens a memória fresca?
Eh, eh, refresca-a,
mete-me na cama contigo!
Polainas cinzentas levavas,
e tomavas chocolate,
ias p’rà cama com cadetes…
Agora vais com soldados?
Eh, eh, peca, peca!
Vais sentir a alma mais leve!
Tens uma cicatriz no pescoço,
Kátia, a cicatriz de uma facada.
No peito, Kátia,
tens uma unhada fresca!
Eh, eh, dança!
Que pernas tão bonitas!
Levavas roupas de rendas;
por que não agora?
Fodias com oficiais,
por que não agora?
Fode, fode!
O coração salta-me no peito!
Recordas, Kátia, aquele oficial,
Que não se salvou da navalha…
Não te lembras dele?
Ou não tens a memória fresca?
Eh, eh, refresca-a,
mete-me na cama contigo!
Polainas cinzentas levavas,
e tomavas chocolate,
ias p’rà cama com cadetes…
Agora vais com soldados?
Eh, eh, peca, peca!
Vais sentir a alma mais leve!
(...)
Aleksandr Blok, Os Doze, in "Poetas Russos"
Trad.: Manuel de Seabra
Relógio d'Água
Relógio d'Água
sábado, julho 07, 2007
Agora a ordem quebrou-se
sexta-feira, julho 06, 2007
Outro Despertar
Tenho o triste hábito de cheirar a ponta das minhas trombas mal acordo de manhã. As minhas trombas são relativamente sensíveis e lacrimejam com alguma abundância durante a noite. Creio não exagerar se afirmar que são como os olhos das focas ou leões marinhos que vemos na tv. É um acto irreflectido e concedo que poderá ser visto como algo sórdido ou causar algum assombro aos mais susceptíveis ou a meninas em idade casadoira. Segue-se então o exercício matinal com o meu companheiro de garras: fazer o pino na parede âmbar e esperar pelo segundo toque do despertador. Ao pequeno-almoço, lemos as passagens de bíblia que vêm no verso das embalagens de cereais. A minha formação religiosa é católica, ele é presbiteriano, mas somos ambos tolerantes e gostamos de estar em comunhão um com o outro.
Lemos os textos sagrados em voz sólida e colocada para começar bem o dia.
Lemos os textos sagrados em voz sólida e colocada para começar bem o dia.
segunda-feira, julho 02, 2007
Nicolas de Staël
Ainda procuro palavras para me entregar. Sinto a boca apertada por um torno, sou de poucas falas e quando falo, avanço com peões sem importância. Levanto a mão e peço licença à menina para pedir cerejas e subir a alça descaída, onde já se viu? Gostaria de ordenar os meus sentimentos por ordem alfabética, assim o Amor viria em primeiro lugar.
Lisboa até já.
domingo, julho 01, 2007
Domingo de manhã
Com a vozinha velada, o gato miou-me ao ouvido, meio a medo:
- Tens de tapar a melena grisalha dessa tua cigana com uma mitra dourada, gasta, a cheirar a incenso. O safado do bispo está no compartimento que serve de quarto da rulote e a porta não pode ser trancada, deixaram-na entreaberta. Sua Eminência esconde-se debaixo dos velhos lençóis de linho que faz questão em abençoar todas as semanas. Ainda não o descobriste, mas está cagado de medo e faz promessas ao Patrão que nunca irá cumprir. Ela olha para dentro dos teus olhos e age, imperturbável, cerimoniosa, como se estivessem só os dois. Pede-te a mão direita para iniciar a leitura. Miau, escreve isso, vá, és um homem ou um rato?
O bichano deu-me uma trinca na orelha, e antes que eu pudesse esboçar qualquer reacção, saltou do meu ombro para cima da colcha com a agilidade de um acrobata chinês e correu em direcção à cozinha para terminar o resto da ração. Anda meio doido, gosta muito do Miró, o gatarrão do último andar do velho prédio da frente. Já me mijou no chã por duas ou três vezes.
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