quinta-feira, abril 29, 2010

A última noite do rei


David Teniers le Jeune

Chamou virtuosos músicos de alaúde, de viola, de saltério. Não chamou o monge que largava um bafo pestilento dentro do confessionário. Chamou o barqueiro que lhe oferecia sempre uma laranja para não enjoar durante a travessia do rio. Chamou os três criados franceses que tinham chegado há dois dias e, que apesar do seu ar eternamente fatigado, ainda cheiravam a perfume. Mandou chamar o habilidoso carpinteiro sem a sua serra. Não chamou a rainha desta vez, nem as duquesas, suas irmãs. Mandou espalhar morangos, frutos silvestres e nozes pelos seus aposentos, e vinho, muito vinho. Mandou chamar um artíficie que morava no limite das suas terras e que dizia estar a construir uma "barca voadora". Não chamou os ministros, essas aves de rapina agoirentas, nem o médico, pois a sua presença agravaria ainda mais a sua doença. Chamou o secretário da Fazenda que era magro como um osso e que errava sempre nas contas do reino mas sempre com uma diferença exacta do valor correcto. Chamou o velho cozinheiro que, apesar de sujo e grosseiro, cozinhara sempre deliciosas iguarias. Encheu o quarto com pavões, garças e papagaios. Pagou a peso de ouro por uma grande tartaruga cuja carapaça parecia retratar o rosto de Cristo. Ordenou a presença dos arqueiros com as suas enormes flechas e do seu leal Cavaleiro Branco que conhecia muito bem os aposentos reais. Infantaria não, cheiravam muito mal dos pés. Todos teriam travesseiros de seda e colchões de penas de grandes poetas para sonhar os mesmos sonhos do seu rei.