sexta-feira, outubro 31, 2008

Estudo para um soneto alexandrino


A vossa atenção pf. Isto é um primeiro estudo para um soneto alexandrino com tónicas a sério. Setembro de 1939. Os aduaneiros polacos deixam passar pelicanos alemães a troco de uns cobres e de umas quantas frauleins. Como poderiam adivinhar que as suas bolsas levavam Panzers e regimentos inteiros? Ah, a história repete-se. Setembro de 2008. Os aduaneiros islandeses deixam passar pelicanos ingleses a troco de uns cobres e de umas quantas frauleins. Como poderiam adivinhar que as suas bolsas levavam taxas de morte e veneno especulativo? (...)

quarta-feira, outubro 29, 2008

O lagarto embalsamado

O fiacre pára subitamente na velha rua molhada. Os arredores e as pessoas que aí vivem estão condenados a serem sujos e feios. Os cavalos relincham estorvados. O suor escorre pela fronte do cocheiro como se as águas lhe tivessem rebentado. Atrás estão duas mulheres. A do vestido de tafetá púrpura limpa os lábios com um lenço de renda enquanto lança um olhar vicioso à mais nova que puxa as meias e arranja a crinolina. A rua está deserta. De repente, o cocheiro cai fulminado para o lado. Ouve-se um choro sufocado de um bebé que parece vir das traseiras. Uma das mulheres abre lentamente a porta do fiacre e desce com um frasco debaixo do braço. O lagarto embalsamado do frasco parece sorrir.

terça-feira, outubro 28, 2008

A boca de Midwest



Não desertou.
Voltou para junto
dos seus camaradas,
lutou até que o inimigo
se entregasse.
À noite, enquanto
limpava a arma
(a areia do deserto
é impiedosa)
fitava a boca
do novo oficial
e isso parecia
bastar-lhe.

quinta-feira, outubro 23, 2008

O Capitão-de-mar-e-guerra


a noite devolveu-me aquilo
que era meu
desde nascença:
deus-filho

será para ti,
cara de pastel envergonhado,
o autor do Tratado Marítimo
da Paixão Missionária,
o Capitão-de-mar-e-guerra com
binóculos de longo alcance
e medalhas de mérito
ao peito. No dia em que se
reabastecer em terra, anjos
grumetes irão anunciá-lo
em barcaças douradas enfeitadas de
coroas de flores, com os nomes
de todas as Virgens conhecidas,
o céu e o mar ficarão tingidos
num azul Yves Klein, o grande profeta

francês do século vinte.
É por isso que olhamos
para o horizonte.

Menos Dois

- Boa tarde.
- Boa tarde, para onde vai?
- Para o - 2, por favor.
- Não vá. É desagradável nesta altura do ano.
- A sério?
- Além disso, come-se mal, já lá fui duas vezes
com a minha senhora e não gostei.
- ...e agora?
- Olhe, no domingo cedinho, pegue na sua família
e vá por aí fora até ao 4º. Ainda apanha as amendoeiras
em flor, é muito bonito, parece uma pintura.
- Ah! E come-se bem?
- Uma dose dá para três pessoas. Olhe para mim sou
um homem de sustento.
- Sim senhor. Obrigado.
- Ora essa. Já agora, é o senhor que costuma dormir
nu da cintura para baixo e não tem estores?
- Sou sim.
- Tenho aqui uma carta da gestão do condomínio, veio
por engano ter à minha caixa.
- Ah agradeço-lhe mais uma vez!
- Não tem que agradecer, temos de ser uns para os outros.
- Pois é, pois é!
- Saio aqui, continuação.
- Continuação, até logo.

segunda-feira, outubro 20, 2008


"O Enterro de Punchinello"
Giovanni Domenico Tiepolo

sábado, outubro 18, 2008

As santas amas-de-leite

Nos condados da Pequena Polónia, todas as capelinhas e igrejas têm estátuas de amas-de-leite nos nichos laterais e até nos altares-mor. Os sacerdotes consagram os seus votos perpétuos à ama-de-leite com o mesmo nome da sua mãe ou madrasta. Os mais velhos dizem que cai chuva branca durante três dias e três noites quando nasce uma santa ama-de-leite. Dizem ainda que haverá batatas em abundância nesse ano e que ninguém padecerá de doenças dos ossos.

quinta-feira, outubro 16, 2008

Paranoid,
The Black Sabbath

terça-feira, outubro 14, 2008

o homem dos ralos



um homem meio truão
meio instantâneo
vendia ralos
da reputada casa "Clockwise"
junto ao museu nacional
o peito servia de bancada,
os interessados compravam
o artigo com as mãos atrás da nuca
em tom de lamúria: "o custo da vida, etc."

no fundo era um estratega
bem sucedido
as pessoas eram atraídas
pelas balaustradas
onde ficava encostado
todo o dia
"é um produto que vende
por si", dizia
com olhar macio e
enquanto ordenava os ralos
por tamanho

segunda-feira, outubro 13, 2008

Chapéus de palha



O barbeiro despachou os chapéus de palha num abrir e piscar de olhos. E ainda fez um bom dinheiro nesse Verão. Os antigos donos ficavam tão embevecidos com o novo corte que se esqueciam dos chapéus. Alguns até saíam com o penteador nos ombros e andavam assim dias a fio, muito cheios de si.

sábado, outubro 11, 2008

O Carteiro de Boulevard Rousseau

Enquanto a mulher do 22 assinava o aviso, o Carteiro penteava lentamente o bigodinho hirsuto com o dedo e o polegar, sem desviar o olhar da figura que tinha diante de si. A jovem tinha o cabelo apanhado e usava uma camisa de seda escarlate. A corrente de ar trazia do interior da casa um aroma a mel misturado com suor. Há quatro anos que entregava a correspondência naquela casa e fora sempre recebido por uma mulher diferente. Chegou a fazer vigílias à noite, durante horas a fio, no pequeno jardim de Boulevard Rousseau, mas nunca viu ninguém a entrar ou a sair daquela casa.
- Como é possível? - pensava, ajeitando o bigodinho.
Ao contrário de outros colegas mais madraceiros, o Carteiro nunca falhou uma carta e nunca trabalhava em contraluz tal como lhe recomendara o seu chefe no primeiro dia. Para evitar surpresas desagradáveis, trazia sempre uma sombrinha consigo. Conhecia cada pedra, cada janela, cada esquina do Boulevard Rousseau como a palma da sua mão e, tal como no filme da Lara Turner, fazia questão de tocar sempre duas vezes.
Dois dias antes de ser transferido para outra zona da cidade, verificou que tinha uma encomenda para o 22. Deixou-a para o fim do giro. O dia estava anormalmente quente para aquela altura do ano.
A mulher que veio à porta parecia ser mais velha do que todas as outras e teve a sensação de que já a vira em qualquer lado. Era madura como uma maçã vermelha pronta a comer.
- Não quer entrar e beber uma limonada? - perguntou, enquanto abanava lentamente um leque com uma paisagem oriental.
O coração do Carteiro saiu disparado pelo peito, mas recompôs-se de imediato.
- É muito gentil, mas não é necessário.
- Vá lá, faço questão! Não deve ser fácil trabalhar debaixo deste calor horrível! Entre.
A mulher deixou a porta escancarada e desapareceu no interior da casa. Faltava pouco mais de cinco minutos para o meio-dia e o sol não dava sinais de tréguas.

quarta-feira, outubro 08, 2008


Jean Seberg (1938-1979)
CSI no encalço de Bach e Bach

terça-feira, outubro 07, 2008

As mulheres das passagens de nível


Nos tempos do Antigo Regime, a CP empreendeu uma selecção de pessoal sem precedentes no historial da empresa. As mulheres das passagens de nível deviam ser facilmente reconhecidas pela sua feiura saudável e distinta. Terem nascido viúvas e terem uma irmã gêmea (falsa ou verdadeira) eram também dois pré-requisitos obrigatórios. As seleccionadas vivam em casebres junto à linha. Não podiam entrar em querelas com as suas irmãs gêmeas que empunhavam gloriosamente as bandeiras. Estas bandeiras foram queimadas quando as mulheres das passagens de nível partiram em debandada não se sabe muito bem para onde. Há quem afirme ter visto algumas destas mulheres empoleiradas em catenárias de linhas desabilitadas, no interior profundo.
O museu da CP apresenta uma exposição temporária de diapasões utilizados pelas mulheres das passagens de nível. Os diapasões eram colocados sobre o carril para calcular a distância do próximo comboio. A precisão destes instrumentos era notável.

quinta-feira, outubro 02, 2008

D. Quarto III, o Fazedor de Bastardos

Carrega nos ombros
metade do seu reino
a outra metade
é feita de embriões reais
que são as armas da nação
no dia a seguir
ao seu 50º aniversário
apaga a crise de meia idade
na varanda do palácio,
sonhos venezianos -
todos os gondoleiros
são seus filhos
e todas as pontes
são de marfim.
Trôpego, volta
para dentro
e põe o cozido
em lume brando.

quarta-feira, outubro 01, 2008

Os encantadores de serpentes




Quando atravessaram o Bósforo, os encantadores de serpentes ficaram pasmados com a imponência e a nobreza dos templos europeus. O ancião do grupo, Boca de Áspide, ou o Grande Mestre Virtuoso, como lhe chamavam os seus pupilos, enterrou o seu funil de latão junto da catedral de S. Alexandre Nevsky, porque acreditava que iria ouvir finalmente as "sábias falas dos homens e as belas melodias da natureza". A grande diáspora dos encantadores de serpentes tinha começado. Contudo, e tal como nas histórias de alienígenas , os encantadores de serpentes ficaram contaminados com as palavras melífluas das castas mais letradas e, por mais que se esforçassem, não conseguiam compreender aquilo que os sacerdotes diziam. Estranhavam muito as suas vestes, pois, na sua terra natal, os homens sagrados andavam nus e não viviam enclausurados. Então começaram a imitar as gentes nativas até ao mais ínfimo pormenor, adoptando poses quando fumavam ou inalavam rapé, choravam nos ombros dos outros sem motivo e conspiravam entre si na troca de pequenos favores, sem nunca se cansarem destes gestos. Com os anos, estes gestos tornaram-se maneirismos; com os séculos, estes maneirismos transformaram-se em rituais que viriam a ser observados por todos. Deixaram de falar alto para falar baixinho e muito delicadamente. Quando lhes faziam perguntas para as quais não sabiam a resposta, inventavam frases evasivas, mas de um jeito muito gracioso e eloquente. Criaram uma linguagem própria e muito distinta de todas as outras. Agora, era a vez do povo de não compreender aquilo que os encantadores de serpentes diziam e, como ninguém queria ser visto como ignorante, começaram a respeitar e a louvar os encantadores. Os encantadores deixaram de vaguear de terra em terra para se estabelecerem nas capitais e engordarem até poderem rebolar sem grande esforço. Alguns, porém, ainda usam cintas de cetim para parecerem mais elegantes. Raramente suam e cheiram sempre a alfazema ou a frésias.
Naturalmente, nem todos foram bem sucedidos. Estes infelizes morreram na maior das misérias. Os cães parecem ser únicos que gostam de farejar e demarcar o sítio onde estão enterrados.