sexta-feira, março 16, 2007

As Ites e o Regulamento


Enrico Baj

Os ricos não dormiam nem comiam no quartel. Tinham quartos alugados pela cidade, e regalavam-se com bifes e batatas fritas, e muito vinho verde, nas mesas trôpegas e sujas das tascas da avenida, sob nuvens de solícitas moscas. As minhas posses não davam para tal libertação; e, porque precisava de sossego para a minha cabeça e para trabalhar nas traduções que fazia (no quartel não havia uma única sala onde se estivesse, e as casernas, iluminadas por tímidas lâmpadas, eram, depois do "recolher" e do "silêncio", anfiteatro de competições desportivas quanto às capacidades gasoso-intestinais, ou teatro de assaltos de pederastia galhofeira às camas dos tidos por "maricas" - assaltos que degeneravam em batalhas tremendas a travesseiro e cinturão de couro -, quando não eram apenas cenário de pacíficas exibições de strip-tease que culminavam em inocentes concursos de instrumental genésico, em que o vencedor era necessariamente sempre o mesmo indivíduo, que já viera para o quartel com a alcunha de "tripé", tendo sido mesmo uma vez convidado a mostrar-se na Sala dos Oficiais), eu requerera para dormir fora.

Jorge de Sena, "Os Grão-Capitães",
Edições 70, 1976