segunda-feira, novembro 07, 2016

A Guerra nos Territórios Desconhecidos da Cabeça



Depois de um sábado em cheio passado no Porto, tinha sempre bastante dificuldade em adormecer. Todos os meus pensamentos que andavam espalhados e distraídos pelo meu corpo durante a semana, subiam-me agora à cabeça e lutavam entre si para ter o controlo sobre a minha mente. Uma vez, ao passar pela Loja de Cima, ouvi o Brandão a dizer que não deixava que os seus pensamentos durassem mais que um cigarro. Quem me dera ser capaz disso. Parece que estou a montar guarda a mim próprio. A noite cobria o Monte, olho por entre os furinhos dos estores. O Porto é uma ilha que brilha do outro lado do rio. A minha cabeça é uma fortaleza e os pensamentos são soldados inimigos que querem conquistá-la apenas porque sim. Os meus olhos são as seteiras, o meu nariz é um baluarte, o meu cérebro é um general desorientado e nervoso que não consegue dar ordens às suas tropas. O fosso é a minha garganta que sinto cada vez mais apertada, não serve de nada contra os meus pensamentos que avançam com escadotes e arietes. Muitos morrem ao tentar trepar a muralha, mas por cada pensamento morto, há mais dois ou três prontos para ocuparem o seu lugar. Entre os pensamentos, há recordações e medos infiltrados. São oficiais que se impõem pela sua presença entre os pensamentos rasos. Na maior parte do tempo, sei que estão lá, mas andam despercebidos, quase despreocupados, baixam os olhos quando, por um motivo qualquer, os encaro. Quando jogo a bola, eles não aparecem. Quando vou para o Quintal do Mota, eles não existem. Quando vou à Loja de Cima ou passo pela Viela dos Gatos, não dão sinais de vida. Mas quando vou para a cama, parece que já consigo ouvir o grande tumulto atrás da linha do horizonte, são eles a formarem-se.

O meu primeiro pensamento consciente durou-me mais que o cigarro do Brandão. O meu primeiro pensamento era um espião, um agente infiltrado que pelos vistos morava na minha cabeça desde que nasci, não sabia que a minha cabeça podia ter elementos tão estranhos. Senti-me muito confuso, foi como se a minha cabeça tivesse despertado de um coma induzido por mim mesmo; o general estava a dormir em tempo de paz e alguém o acordou a meio da noite: a guerra nos Territórios Desconhecidos da Cabeça tinha sido declarada. A noite vai ser longa. Quando por fim derrubam o grande portão de aço que é a minha boca, pilham e destruem tudo por onde passam. São os Vândalos, os Hunos e os Vikings reunidos num único grande e temível exército de que a irmã Alzira falou quando falou da presença dos Mouros (os Infiéis!) no nosso país. Não consigo dominá-los, metem-se pelas ruas e ruelas da minha cabeça, esquadrinham cada canto, cada esquina, viram tudo do avesso. Nem todos os pensamentos são desagradáveis e cruéis. Os bons e os maus assolam-me a cabeça com a mesma força. Ou melhor, neste caso, nem todas as recordações são incómodas.