O homem-bala, antes de ser o incrível homem-bala de que toda a gente fala, desejou ardentemente ser anjo e alguns dizem que até chorou lágrimas de sangue para que Deus Misericordioso fizesse a sua vontade. Deus Obsequioso tomou conhecimento do desejo do homem-bala, mas teve de adiar pois estava a dar formação no Colégio Superior dos Palotinos das Cabeças Exaltadas, em Doaula. Com o nervoso a trabalhar, mandibulou muitas galinhas e enfardou muito arroz de tamboril para se acalmar.
- Do que me serve andar assim? - pensou.
Assumiu a sua vocação, desceu das nuvens e resolveu ser o que os seus pais queriam que ele fosse. A sua mulher - tinha medo dela - queria que ele fosse faroleiro. O que ela realmente queria era passar mais tempo com o dono do circo que era seu amante. Nos primeiros anos de casamento, o homem-bala adorava passear de braço dado com ela, calcorreavam mil passos pelas cidades e vilas por onde passavam. Agora, nem por isso. As más-línguas dizem que o Eliseu, o dono do circo, a seduziu com dentes de ouro e a promessa de uns peitinhos maiores. Pouco a pouco, o homem-bala e a mulher deixaram de se trepar. O seu casamento não era mais do que um triste e arrastado ajoujo.
O homem-bala refugiou-se no seu trabalho, no seu velho canhão. Escorraçou Kant, o elefante que lá vivia, tirou à pá os excrementos que o paquiderme tinha deixado e começou a treinar arduamente. Em breve, estaria de volta! Em breve, iria reviver a emoção do primeiro dia, do primeiro mergulho nos ares, iria ouvir os "aahh"s, os gritos do público.
O Canhão da Morte eleva-se, todos sustêm a respiração, o bombo ensurdecedor, o Homem-Bala leva as mãos às suas bolinhas arménias e fecha os olhos.