Enquanto espero pelo eléctrico que me vai deixar perto da capela mortuária, penso no meu amigo que faleceu recentemente. Começa a chuviscar. Toda a gente foge para debaixo do coberto da paragem, um grupo de turistas-trogloditas solta exclamações de afectada surpresa para depois desatarem às gargalhadas como verdadeiros cretinos. As semelhanças entre os turistas-trogloditas e os cretinos-pedigree são notáveis. Estamos todos zipados, encostados uns aos outros, o meu nariz encolhe e fica anestesiado. Os trogloditas cheiram a suor e o mais velho tresanda a Porto quando abre a boca. Ainda por cima é aquela zurrapa de três anos que lhes dão a provar nas caves. Verdade seja dita, até é bom demais para os trogloditas. Sei do que falo, fui aprendiz de tanoeiro, mas tive de desistir - o chamamento do palco falou mais alto. Volto a pensar no meu falecido amigo. Ele também era actor. O que faria ele nesta situação? Talvez deixasse escapar a mão para o traseiro da quarentona troglodita de olho azul ou então tentava falar aquela língua de farrapos, lamentando a chuva e desculpando-se em nome de todo o povo português. Na verdade, comecei a odiar o meu amigo de há dois anos para cá. Era um ódio mútuo, sem motivos e talvez por causa disso tornou-se cada vez mais sombrio. Qualquer incidente, qualquer pequena fatalidade que acontecesse ao outro, fazia-nos ganhar o dia. Era um ódio não declarado, um rancor saudável que me fazia continuar e dava sentido à minha vida. Contracenei com ele várias vezes e tentávamos sempre superar um ao outro. Não existia mais nada à nossa volta. O gajo era bom, mas eu era melhor. Ele sabia disso, pois dava-me sempre os parabéns nos camarins. O cabotino implodia de fel, mas dizia-me sempre que "esta tinha sido a minha actuação". Todas as noites. Por outro lado, quando saímos os dois, fazia-me confidências sobre a sua vida amorosa, apenas porque sabia que me irritava profundamente. Falava das suas façanhas sexuais, das suas conquistas durante horas a fio, roçando às vezes o obsceno. No entanto, ouvia-o como um padre num confessionário. Por uma razão que desconheço, não conseguia mandá-lo calar e lançava-lhe apenas olhares de raiva que só lhe davam mais força para continuar com mais prosápia. Bastardo. Agora tudo isto acabou, o gajo partiu, foi ceifado em cheio por um taxista embriagado quando saia do teatro. Chegou o eléctrico. Deixo subir primeiro os turistas-trogloditas que quase atropelam a senhora de idade que os manda a todos para o órgão sexual masculino. Não especificou qual. Quando cheguei à capela, já lá estava meia dúzia de amigos e familiares que se reuniam à volta do caixão. Lá estava ele. Para quem pensava que iria morrer louco (como a mãe), tiveste um fim menos glorioso, ah bastardo? Sorrio. Senti uma mão no ombro. Caio em mim e viro-me. Era um homem na casa dos trinta e muitos, fato preto Zegna, óculos de massa escuros, parecia ser meio estrábico.
- Peço desculpa, o senhor era amigo do meu irmão?
Desvio o olhar. Atrás dele está uma mulher de idade com o rosto ossudo que leva um lenço branco ao nariz e encara-me com os olhos molhados. Dirijo-me imediatamente para a porta e desço as escadas de pedra sem olhar para os degraus. Conheço-os bem. Não consegui ficar mais tempo, é pena. Tiro a maçã que tinha no bolso do casaco e trinco-a. O próximo eléctrico só chega daqui a meia hora. Não há trogloditas à vista.
Desde que fiquei desempregado há um ano que tenho por hábito frequentar funerais e missas de sétimo dia de desconhecidos. Por motivos que ainda não escavei, a dor de estranhos faz-me sentir bem.