sábado, julho 26, 2008

O criado do rei, o rei e o espelho




O criado do rei limpava o magnífico espelho que ocupava quase uma parede dos faustosos aposentos reais.
Ao longo de vinte anos e um quarto crescente, seu pai notabilizara-se neste ofício ao serviço do velho rei. Como era costume, e se o bom Deus assim o permitisse, o filho iria seguir as mesmas pisadas do pai. No momento seguinte, eis que o rei irrompe pelo quarto adentro agarrado à duquesa de Jaccuse-y, sua favorita dos dias ímpares, que se deixa agarrar com muito saber e algum prazer. O criado vê o reflexo distorcido do rei e começa a limpar de modo mais veemente a superfície acinzentada do espelho. O rei indigna-se, deixa Jaccuse-y alguns passos atrás e interpela o súbdito:
- Tu aí! Não saúdas o teu Rei?!
O criado volta-se, faz uma longa vénia e com os olhos sempre postos nos sapatos carmins do rei responde:
- Majestade! Amo tanto Vossa Majestade que
humildemente me arroguei a polir ainda mais a vossa imponente e bela figura reflectida neste espelho atrás de mim. Foi a única maneira que este seu simples súbdito encontrou de vos prestar homenagem e admiração. Mil vezes perdão, Majestade.
O rei, comovido com tamanha dedicação à sua real e abundante figura, levou a mão pálida ao peito insuflado e proferiu as seguintes palavras de costas voltadas para o criado:
- Pois hoje será o último dia que limpas esse espelho, criado. Ordenamos-te que te vires e continues a limpá-lo com igual zelo enquanto o teu rei estiver no leito com sua senhoria, a duquesa. Apresenta-te amanhã no nosso gabinete. Iremos nomear-te moço de câmara.