Voz numa pedra
Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Ísis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco e flecha negro e azul do vento.
(...)
segunda-feira, novembro 27, 2006
domingo, novembro 26, 2006
Fidel
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Estava uma noite limpa, de outros tempos, pré-revolucionária. A minha posição no partido dependia da minha performance dessa noite. Tinha as mãos suadas, sentia o peso dos olhares críticos dos camaradas apontados para mim. Mas não tinha nada a temer. Apesar de ter pé boto, já dera provas de ser um excelente dançarino. Dominava as sombras elegantes do tango e soltava suspiros dos meus parceiros só com o olhar. Herdara estrabismo do meu avó paterno, o meu pai só conheceu uma mulher, a minha mãe - o encanto pulou uma geração.
Chegara a nossa vez. Fidel voltou-se para mim e perguntou:
- O menino...dança?
Nesses tempos, Fidel usava brilhantina made in USA, embora ostentasse já umas fartas barbas escuras. Ao contrário do que muita gente pensa, era um verdadeiro cavalheiro e dançava melhor do que o imberbe Rodolfolziño. Nos braços dele, senti-me conjugal, amparado. Compreendo agora a sua magia contagiante, o seu carisma entre as massas. Fidelidade. Era esse o seu segredo. As palmas no final despertaram-me e, pela primeira vez, senti-me homem. Daqueles, de barba rija.
quarta-feira, novembro 22, 2006
A manta
Só depois de acender a luz do meu quarto é que me dou conta. Da escuridão, mas isso é o menos. Da legitimidade dos meus actos, mas isso é o menos. Assustei-me com a manta de lantejoulas sobre a cama, o mau gosto reflecte-se no espelho voyeur, espalha-se por todo o quarto amarelo. Queimá-la seria um bom começo, dizes tu, algo simbólico (...).
segunda-feira, novembro 13, 2006
Hoje
Hoje:
Calcei-me
Aparei a barba
Flexionei
Tomei café
Tomei um duche
Acordei
Saí
Vesti-me
Não necessariamente
por esta
ordem.
Calcei-me
Aparei a barba
Flexionei
Tomei café
Tomei um duche
Acordei
Saí
Vesti-me
Não necessariamente
por esta
ordem.
Chego à altura de poder cair
(...) Chego à altura de poder cair, escolho, estremeço e desisto, e, finalmente, me votando à minha queda, despessoal, sem voz própria, finalmente sem mim - eis que tudo o que não tenho é que é meu. Desisti e quanto menos sou mais viva, quanto mais perco o meu nome mais me chamam, minha única missão secreta é a minha condição, desisto e quanto mais ignoro a senha mais cumpro o segredo, quanto menos sei mais a doçura do abismo é o meu destino.
E então eu adoro. (...)
Clarice Linspector, in A Paixão Segundo G.H.
Relógio D'Água
E então eu adoro. (...)
Clarice Linspector, in A Paixão Segundo G.H.
Relógio D'Água
domingo, novembro 12, 2006
quinta-feira, novembro 09, 2006
Lua cheia
Está cientificamente provado que a lua cheia acelera o crescimento das garras e gera uivos como o post anterior* que, apesar de tudo, é baseado em factos verídicos.
*É mais difícil escrever um texto intencionalmente mau do que um elaborar um texto que possa ser considerado bom (N.E.).
*É mais difícil escrever um texto intencionalmente mau do que um elaborar um texto que possa ser considerado bom (N.E.).
quarta-feira, novembro 08, 2006
Lady Godiva do 2º Frente
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Pela noitinha, a minha vizinha do 2º Fr gosta de passear nua pelos corredores e escadas do prédio, enquanto canta alegremente o Greensleeves. O Peeping Tom desta história (o senhor reformado da EDP do 2º Esq) disse-me que ela vive da pensão do ex-marido e que é mesmo ruiva. Porém, o senhor reformado da EDP ainda não ficou cego.
sábado, novembro 04, 2006
tenho uma cabeça
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Paul Klee
tenho uma cabeça que me diz todos os dias que prescinde de mim, que já não depende de mim, que a sua matéria-prima é agora a chuva fria dos cães vadios, o cio, a vida pela vida, o sol que amarelece cartas de trunfo dos velhos-jardins, a morte seca que consome devagarinho, a cegueira dos que não querem ver, trabalho, trabalho, todos os dias, até ao último comprimido e, à noite, o sorriso desdentado de crianças que se fazem à velocidade do tédio do amor, la petite mort, os olhos fechados da minha avó, o gesto, a sopa que fumegava da enorme tigela e que agora é minha por direito, o vermelho lobo que traz paz.
quarta-feira, novembro 01, 2006
54-30-IN
A garagem estava vazia, meio iluminada. Sentia-me exausto, não tinha forças para subir as escadas e o elevador estava avariado (para não variar). Compreendo as corujas e os morcegos, a penumbra é aconchegante. Dei-me conta que estava a tentar decifrar a matrícula do meu carro. Outra vez. É um jogo que faço desde os tempos do ciclo e que agora raia a obsessão. Mas também pode ser um exercício de purga mental, de eliminação dos ficheiros da reciclagem. É claro que nunca ficam eliminados definitivamente, ficam ocultos para mais tarde recordar. Apaguei a ponta do cigarro, por pouco queimava os dedos. Normalmente, não fumo em dias úteis, mas apeteceu-me acender um, ali. Encostei-me no carro e comecei a bater timidamente com o pé no chão. Levantou-se uma pequena nuvem de pó que ganhou forma sob a luz escura. Nada. Absolutamente nada. De repente, o silêncio é interrompido pelo ruído do mecanismo do portão da garagem. A quietude do local é profanada pelas luzes dos faróis e pelo motor do carro de algum vizinho. Pego nas minhas coisas, fecho o carro, ganho coragem e dirijo-me para as escadas.
54-30-IN intermitente na cabeça.
54-30-IN intermitente na cabeça.
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