quarta-feira, março 07, 2018

O Cicerone do Amor e a Bombeira



O meu Cicerone do Amor diz-me para eu me sentar aqui, no quinto degrau destas escadas apertadas e escuras que vão dar ao Caminho das Garrafas. As escadas fazem um L e cheiram a mijo neste canto, daqui eles não nos conseguem ver, estão no fundo das escadas e demasiado entretidos um com outro para se darem conta que está alguém a espiá-los.

O meu Cicerone do Amor é a minha cara chapada, tem gestos rápidos como eu, arranca as sobrancelhas quando está nervoso, mas agora parece estar muito sereno, já deve ter feito isto muitas vezes. Aconselha-me a ficar ali agachado e quietinho para aprender como se faz, aponta o dedo para o casal de namorados. Aquelas escadas apertadas e escuras são agora uma sala de aula da qual eu sou o único aluno. Chamo-o de Cicerone do Amor porque é exactamente isso que ele é, está a mostrar-me os desconhecidos territórios do amor, e não me parece que aquilo que estão a fazer seja pecado como dizia o seu padre que se foi embora, estão apenas a explorar-se um ou outro, asfixiam-se com as línguas, mas não se vêem, trocam carícias, as barrigas palpitantes tocam-se, ela trinca-lhe na orelha e calha de fixar os seus olhos negros em mim.

Fico paralisado, sinto o meu segundo coração a bater na garganta, não tenho tempo para me transformar num pardal ou num gato, mas a moça não se assusta, não se retrai, é muito melosa, continua a fazer aquilo, sorri com os olhos para mim, fecha-os devagar e continua a lamber o rapazola que está de costas para mim. Desce um degrau para lhe dar mais jeito, a cabeça da moça afunda-se aos poucos e agora só o vejo a ele. O Ccerone do Amor receia que o rapazola se vire a qualquer momento, se o marmanjo se aperceber que estamos a dar uma de mirones, faz-nos uma cruz na testa, acaba connosco.

O meu Cicerone do Amor tem um cordel atado a um dedo, a outra ponta está em casa, diz que é para não se perder no labirinto do Monte, agarra-me no braço e faz-me sinal para irmos embora, diz que por hoje já vi o suficiente, subimos as escadas de pedra. Ouço o rapazola a gemer e depois a dizer "continua, continua, és linda", ela suspira e diz "amo-te tanto", e já não ouço mais nada. 

As escadas acabaram e já estou cá em cima, na Viela dos Gatos, o meu Cicerone do Amor desaparece, une-se a mim, não tem poderes para estar ali, naquele quelho, onde ainda moram meia dúzia de velhos e um pelotão de gatos, ele só aparece quando há jovens casais por perto, a consumirem-se pela paixão, agasalhados pelo entardecer na viela e nas escadas.

A viela cheira a pessoas velhas e a mijo de gato. O meu Cicerone do Amor passa a vida a dizer-me que os velhos parecem-se todos uns com os outros. A Bombeira vive sozinha. Passo pela porta da casa dela, é conhecida como Bombeira, porque o falecido marido era bombeiro. 

Digo "boa noite", ela responde com a sua voz rouca, "olá menino", tem os braços brancos e sinaleiros apoiados numa porta pequena, está calor, ela segura com a mão esquerda um espelho oval, a moldura dourada tem uma grinalda de rosas, e na outra mão, tem um cigarro enfiado entre o indicador e o dedo do meio que têm uma cor âmbar. Ela esconde-o, mas já não vai a tempo, já o vi, acelero o passo e escondo-me mais à frente, atrás de três degraus que dão acesso à porta da cozinha da casa do Caça-Balões. A luz do candeeiro em frente à casa da Bombeira desfalece um pouco antes do fim da Viela, ela já não me consegue ver. Não há ninguém cá fora àquela hora, ouço o tinir dos talheres nos pratos e o mastigar de bocas abertas, alguém desata aos berros do outro lado do Monte, é hora do jantar, um cheiro a peixe frito que vem da cozinha da Martinha castiga-me o nariz.

A Bombeira deve ter uns sessenta e tal anos, ela suga o cigarro e solta uma enorme fumaça que quase parte o espelho, consigo ver as suas mãos azuis, as peles do antebraço esquerdo abanam-se sempre que ela dá uma passa, ela põe o espelho num ângulo que me permite ver a sua cara. Esfrego bem os olhos, dormi mal a noite passada, arregalo-os bem, tento furar a penumbra da Viela. A Bombeira parece-me agora dez anos mais nova, quer dizer, não sei como é que ela era há dez anos, eu ainda era um bebé ranhoso, mas sei que é o rosto dela que aparece naquele lindo espelho oval, com menos rugas, menos cansado e mais luminoso, e então ela chupa outra vez o cigarro e torna a apreciar-se, o espelho devolve uma mulher na casa dos quarenta, a beleza de uma mulher madura e segura espalha-se naquele espelho generoso, as pequeninas peles ao dependuro são ainda muito aceitáveis, o cabelo fica mais forte, ela sorri e olha para cima, para as estrelas como que a agradecer-lhes por aquele momento. Mais outra passa demorada, esta valeu por duas, da sua boca sai um fio de fumo que não tem fim, a dona Bombeira é agora a menina Bombeira de vinte aninhos, “um docinho”, como diriam os homens da Loja de Cima. O falecido senhor Bombeiro tinha olho, ele sabia o que estava a fazer na altura. 

Não estou sozinho. Não é que o Cicerone do Amor apeou-se de mim e está agora de cócoras ao meu lado, com cara de idiota, ainda mais excitado do que eu. O meu cicerone do Amor gosta de pensar em voz alta, mas tem de pensar baixinho para a senhora não o ouvir, e em que é que ele está a pensar? Pensa na quantidade de mulheres capazes de matar outras mulheres para terem um espelho assim, um espelho que lhes subtraísse alguns anos, ou então, à falta de melhor, um homem-espelho que lhes mentisse, que lhes dissesse todos os dias que continuam a serem tão belas como no dia em que as conheceram. O espectáculo está prestes a acabar, a dona Bombeira atira a beata para o fundo das escadas, cola o espelho ao nível dos olhos, começa a tirar pêlos das sobrancelhas com uma pinça, usa a luz do lampião, e depois afasta-o e baixa-o lentamente até à pescoço engelhado, olha-se pela última vez, o espelho treme, o rosto viajou para a frente quarenta anos, voltou a ser o que era, cheio de rugas e manchas de velhice, mas ela não deixa de sorrir, só que é um sorriso diferente. Ainda teve tempo para cortar as unhas antes de ir para dentro, tic tic tic, um belo unheiro vai nascer ali entre os grumos do chão de cimento, há vários arbustos destes espalhados pelo Monte.

Por uma razão qualquer (deve ser a minha velha paixão por barcos), a Bombeira faz-me lembrar uma velha âncora a ser puxada para dentro do casco de um navio, ouço-a a trancar a porta, ouço-a a pigarrear durante algum tempo. Encosto-me à parede enrugada da cozinha da Martinha, tinta tartaruga, apoio o braço num dos degraus, não me apetece ir já para casa, deixo-me estar sentado até que a minha mãe me chame para jantar, o olho esquerdo começa-me a tremer, esfrego-o e fico com comichão. Só nesse momento é que me dou conta que o meu Cicerone do Amor não voltou a unir-se a mim, é um tipo muito caprichoso, mas sei que ele vai voltar.