O meu Cicerone do
Amor diz-me para eu me sentar aqui, no quinto degrau destas escadas apertadas e
escuras que vão dar ao Caminho das Garrafas. As escadas fazem um L e cheiram a
mijo neste canto, daqui eles não nos conseguem ver, estão no fundo das escadas
e demasiado entretidos um com outro para se darem conta que está alguém a
espiá-los.
O meu Cicerone do Amor é a minha cara chapada, tem gestos rápidos
como eu, arranca as sobrancelhas quando está nervoso, mas agora parece estar
muito sereno, já deve ter feito isto muitas vezes. Aconselha-me a ficar ali
agachado e quietinho para aprender como se faz, aponta o dedo para o casal de
namorados. Aquelas escadas apertadas e escuras são agora uma sala de aula da qual
eu sou o único aluno. Chamo-o de Cicerone do Amor porque é exactamente isso que
ele é, está a mostrar-me os desconhecidos territórios do amor, e não me parece que
aquilo que estão a fazer seja pecado como dizia o seu padre que se foi embora,
estão apenas a explorar-se um ou outro, asfixiam-se com as línguas, mas não se
vêem, trocam carícias, as barrigas palpitantes tocam-se, ela trinca-lhe na
orelha e calha de fixar os seus olhos negros em mim.
Fico paralisado, sinto o
meu segundo coração a bater na garganta, não tenho tempo para me transformar
num pardal ou num gato, mas a moça não se assusta, não se retrai, é muito
melosa, continua a fazer aquilo, sorri com os olhos para mim, fecha-os devagar
e continua a lamber o rapazola que está de costas para mim. Desce um degrau
para lhe dar mais jeito, a cabeça da moça afunda-se aos poucos e agora só o
vejo a ele. O Ccerone do Amor receia que o rapazola se vire a qualquer
momento, se o marmanjo se aperceber que estamos a dar uma de mirones, faz-nos
uma cruz na testa, acaba connosco.
O meu Cicerone do
Amor tem um cordel atado a um dedo, a outra ponta está em casa, diz que é para
não se perder no labirinto do Monte, agarra-me no braço e faz-me sinal para
irmos embora, diz que por hoje já vi o suficiente, subimos as escadas de pedra. Ouço o rapazola a gemer e depois a dizer "continua, continua, és
linda", ela suspira e diz "amo-te tanto", e já não ouço mais
nada.
As escadas acabaram e já estou cá em cima, na Viela dos Gatos, o meu Cicerone do Amor desaparece, une-se a mim, não tem poderes para estar ali,
naquele quelho, onde ainda moram meia dúzia de velhos e um pelotão de gatos,
ele só aparece quando há jovens casais por perto, a consumirem-se pela
paixão, agasalhados pelo entardecer na viela e nas escadas.
A viela cheira a
pessoas velhas e a mijo de gato. O meu Cicerone do Amor passa a vida a dizer-me
que os velhos parecem-se todos uns com os outros. A Bombeira vive sozinha. Passo
pela porta da casa dela, é conhecida como Bombeira, porque o falecido marido
era bombeiro.
Digo "boa noite", ela responde com a sua voz rouca,
"olá menino", tem os braços brancos e sinaleiros apoiados numa porta
pequena, está calor, ela segura com a mão esquerda um espelho oval, a moldura
dourada tem uma grinalda de rosas, e na outra mão, tem um cigarro enfiado entre
o indicador e o dedo do meio que têm uma cor âmbar. Ela esconde-o, mas já não
vai a tempo, já o vi, acelero o passo e escondo-me mais à frente, atrás de três
degraus que dão acesso à porta da cozinha da casa do Caça-Balões. A luz do
candeeiro em frente à casa da Bombeira desfalece um pouco antes do fim da
Viela, ela já não me consegue ver. Não há ninguém cá fora àquela hora, ouço o
tinir dos talheres nos pratos e o mastigar de bocas abertas, alguém desata aos
berros do outro lado do Monte, é hora do jantar, um cheiro a peixe frito que
vem da cozinha da Martinha castiga-me o nariz.
A Bombeira
deve ter uns sessenta e tal anos, ela suga o cigarro e solta uma enorme fumaça que
quase parte o espelho, consigo ver as suas mãos azuis, as peles do antebraço
esquerdo abanam-se sempre que ela dá uma passa, ela põe o espelho num ângulo
que me permite ver a sua cara. Esfrego bem os olhos, dormi mal a noite passada,
arregalo-os bem, tento furar a penumbra da Viela. A Bombeira parece-me agora
dez anos mais nova, quer dizer, não sei como é que ela era há dez anos, eu
ainda era um bebé ranhoso, mas sei que é o rosto dela que aparece naquele lindo
espelho oval, com menos rugas, menos cansado e mais luminoso, e então ela chupa
outra vez o cigarro e torna a apreciar-se, o espelho devolve uma mulher na casa
dos quarenta, a beleza de uma mulher madura e segura espalha-se naquele espelho
generoso, as pequeninas peles ao dependuro são ainda muito aceitáveis, o cabelo
fica mais forte, ela sorri e olha para cima, para as estrelas como que a
agradecer-lhes por aquele momento. Mais outra passa demorada, esta valeu por duas,
da sua boca sai um fio de fumo que não tem fim, a dona Bombeira é agora a
menina Bombeira de vinte aninhos, “um docinho”, como diriam os homens da Loja
de Cima. O falecido senhor Bombeiro tinha olho, ele sabia o que estava a fazer
na altura.
Por uma razão qualquer (deve ser a minha velha paixão por barcos), a Bombeira faz-me lembrar uma velha âncora a ser puxada para dentro do casco de um navio, ouço-a a trancar a porta, ouço-a a pigarrear durante algum tempo. Encosto-me à parede enrugada da cozinha da Martinha, tinta tartaruga, apoio o braço num dos degraus, não me apetece ir já para casa, deixo-me estar sentado até que a minha mãe me chame para jantar, o olho esquerdo começa-me a tremer, esfrego-o e fico com comichão. Só nesse momento é que me dou conta que o meu Cicerone do Amor não voltou a unir-se a mim, é um tipo muito caprichoso, mas sei que ele vai voltar.