segunda-feira, fevereiro 27, 2017

domingo, fevereiro 26, 2017


quarta-feira, fevereiro 22, 2017

No Monte Athos



Fiz a minha leitura de aura há relativamente pouco tempo. Ao que parece fui monge numa outra encarnação; tudo o que me lembro dessa vida está aqui:

Quando os cânticos terminaram, os monges saíram lentamente em fila indiana, George e o velho monge iriam finalmente ficar a sós; um dos stavróforos ainda hesitou, mas Crisóstomos indicou-lhe com a palma de mão para abandonar a sala. O major esforçou-se por tentar falar no melhor grego que sabia.
— Que o Senhor esteja contigo, meu filho — abençoou o velho monge.
George fez uma vénia e beijou-lhe a mão fria que cheirava a doce de pêssego.
— Obrigado por me receber, irmão Crisóstomos.
— O que te traz aqui? Puseste de lado as armas e vens servir a Deus? — perguntou a sorrir o hegúmeno enquanto afunilava a barba com a mão.
O inglês rodou o quepe que segurava nas mãos e depois passou o indicador e o anelar pelas entradas do cabelo que formavam duas pequenas baías na testa.
O monge quis facilitar-lhe a vida e antecipou-se:
— No início da Cristandade, o imperador Juliano, o Apóstata, queria que o povo convertido ao único Deus voltasse a adorar os antigos deuses gregos e romanos, e quis profanar a Quaresma Cristã, ordenando que o governador de Constantinopla desse ordem para que o sangue dos animais sacrificados para o culto dos ídolos fosse espalhado sobre os alimentos vendidos nas feiras.
George esboçou um ricto para dar a entender que estava a seguir o pensamento do monge.
— Ora, São Teodoro apareceu ao arcebispo de Constantinopla informando-o do desejo do imperador. O arcebispo pediu logo a todos os cristãos que não comprassem alimentos naquela semana, pois tinha sido corrompidos, e que comessem apenas o "Kutiá". De nada valeu a Juliano a ordem que deu.
— Irmão Crisóstomos, a guerra amputou-me a fé. Juliano teve a felicidade de acreditar em algo e por isso mandou salpicar o sangue nas carnes para humilhar os cristãos. Eu não acredito em deus nenhum, os nossos líderes espalharam o sangue dos seus soldados no campo de batalha. Eu vi esse sangue a ser derramado mais do que uma vez e nunca consegui distinguir se o sangue era nosso ou do nosso inimigo.
O monge ergueu a mão direita.
— O que vieste aqui fazer, meu filho? Amo-te tanto como os meus irmãos, o que fizeste por nós foi inestimável, serás sempre mais do que bem-vindo nesta casa, mas diz-me o que pretendes, soldado.
— Irmão, vim aqui porque...porque conheci um struldbrug...um αθάνατος[1]!
O hegúmeno agarrou com uma das mãos o braço do cadeirão e levantou-se a custo apoiando-se no seu bastão. George precipitou-se na sua direcção para o ajudar. O monge deu passos curtos até ao altar e contemplou uma das muitas efígies de Cristo expostas. Cristo sentado estava representado com a boca muito pequenina e uma sombra anuvia-lhe o olhar; segurava as Sagradas Escrituras com a mão esquerda e parecia estar a contar pelos dedos da outra mão.
— Quase todas as coisas são purificadas com sangue, meu filho. Sem derramamento de sangue não há perdão. Cristo derramou o seu sangue sete vezes. A primeira foi no Jardim de Getsémani onde suou gotas de sangue. Adão cedera o jardim do Éden a Satanás e Jesus pagou nessa noite com o seu sangue a tentação do primeiro homem. Getsémani significa "prensa de azeite". No local onde as gotas caíram nasceram oliveiras que ainda hoje estão lá. Pude vê-las e apalpar o seu tronco na peregrinação que fiz à Terra Santa onde depois Deus te enviou para me salvares, a mim e aos irmãos.
George tirou um livro de apontamentos do bolso de dentro do casaco e começou a tirar notas. A primeira coisa que escreveu foi "hematidrose".
— As doenças foram uma consequência do pecado. Na segunda vez que Jesus derramou o seu sangue por nós foi quando Ele sofreu as trinta e nove chibatadas infligidas pelos soldados romanos. Passaram o arado nas minhas costas e fizeram longos sulcos. Normalmente, eram dados quarenta açoites aos criminosos judeus, mas Jesus recebeu trinta e nove, e os médicos comprovaram que existem 39 doenças-raiz. Temos de dar graças a Deus quando uma doença, seja ela do corpo ou da alma, abandona o nosso corpo, pois ele verteu o seu sangue por nós.
— E quais são essas doenças, irmão Crisóstomos? — perguntou George.
— Depois de ter sido chicoteado, os soldados colocaram-lhe uma coroa de espinhos na cabeça — prosseguiu o monge, ignorando a pergunta do inglês. — Jesus derramou o seu sangue pela terceira vez com a coroa que trespassou a testa e as têmporas, e o Seu sangue caiu sobre o Seu rosto para acabar com a maldição da pobreza da nossa terra. O homem deve cultivar a terra com o seu suor até ao fim dos seus dias.
"Testa, espinhos, cardos, terra" escrevinhou o inglês.
— Jesus escorreu sangue pelas mãos quando o pregaram na cruz. Foram as mesmas mãos que curaram cegos e leprosos, que abraçaram crianças, que abençoaram todos aqueles que O procuravam. Através deste quinto sacrifício, Cristo devolve-nos o dom de fazer boas obras, de criar coisas belas, não há nada que as nossas mãos não possam fazer.
O rosto de George iluminou-se quando ouviu a descrição do quarto derramamento de sangue de Jesus e usou as suas mãos e a caneta para investir furiosamente contra o caderno.
— Quando saiu sangue dos pés de Jesus pelos cravos, esse é o sangue que nos lembra que os nossos pés devem estar firmes na terra e que devemos ter muito cuidado com os locais que frequentamos onde pode haver pecado e idolatria. Fomos criados por Deus para um propósito. Deus não faz nada ao acaso. Devemos trilhar o caminho de Deus.
 
George recordou-se das circunstâncias em que conheceu Orestes. Os seus pés estavam a descer a escadaria de um bordel quando viu o grego pela primeira vez. Orestes, por seu turno, estava a caminho de Abdera que não passa de um monte de ruínas e poeira. "Propósito, cravos, pés, caminho".
— O sexto momento em que Jesus derramou o Seu sangue deu-se quando um dos soldados enfiou uma lança nas Suas costelas, e sangue e água jorraram dessa terrível ferida. João disse, "Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva". Apesar do sofrimento, quando a mulher dá à luz, rebentam-lhe as águas e dá uma nova vida ao mundo.
O major meditou por um instante depois de ouvir o monge. Sempre que a sua mente estava perturbada com algo, ou sempre que sentia dor ou ansiedade, a sua chaga expelia uma substância liquefeita, linfática. Pela primeira vez em muitos anos, conseguiu reconstituir sem esforço os traços do rosto da sua tia.
Com os olhos humedecidos e visivelmente cansado, Crisóstomos passou para o sétimo e último derramamento. Apoiou-se sobre o pequeno altar e olha para cima, para a abóbada. Deus, silencioso, assiste lá do alto à conversa dos dois.
— Por fim,...às três horas da tarde, Jesus, Nosso Senhor, cheio de agonia, grita ao Pai pouco antes de morrer Eloí, Eloí, lamá sabactâni?, Senhor, senhor, porque me abandonaste? Ele foi desprezado e rejeitado pelos homens, e sangrava não só por fora como também dentro de si. Isaías disse, ele foi traspassado por causa das nossas transgressões, foi esmagado por causa de nossas iniquidades; o castigo que nos trouxe paz estava sobre ele, e pelas suas feridas fomos curados. Deus filho encarnado sofreu para atestar a verdade do seu ensinamento e dar o exemplo do mártir.
O velho monge, debateu-se de comoção, tossiu, tossiu, tirou um lenço velho debaixo do hábito e assoou-se ruidosamente. George quis ir buscar água para dar ao amigo, mas tinha receio de se perder nos longos corredores daquele mosteiro labiríntico.
Georgios, falei-te há pouco do arado e da terra, o teu nome significa aquele que trabalha a terra, isto é, lavrador — disse o monge, aparentemente recomposto. Duas bossinhas vermelhas e reluzentes formaram-se no seu rosto, já sorria outra vez.
— Fica aqui e ajuda-nos a trabalhar esta terra que Deus nos deu, Georgios. Precisamos de homens como tu.
— O seu convite muito me honra...mas não posso aceitar. Sou um súbdito de Sua Majestade. Agradeço-lhe, irmão — o inglês fez uma vénia desajeitada. — E quanto aos struldbrugs, irmão? Queria atestar junto de si a sua existência, quero provar a mim mesmo que não estou enganado...ou pior, que perdi a minha sanidade de vez.
— Quando Jesus morreu na cruz, a terra tremeu e muitos sepulcros se abriram, e os corpos de muitos santos que tinham morrido foram ressuscitados. E saindo dos sepulcros, depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos vivos — revelou o monge. — Além disso, juntaram-se muitas mulheres ao redor de Maria Madalena e de Maria, da mãe de Tiago e de José, que estavam ajoelhadas aos pés do Senhor a chorar a sua morte. O centurião e os soldados estavam ainda amedrontados com o tremor de terra e formaram um perímetro afastado da cruz. Diz-me, Georgios...sabes se esse homem nasceu com uma mancha vermelha e redonda na testa, um pouco acima da sobrancelha esquerda?
— Sim, nasceu com essa mancha — respondeu prontamente o inglês.
— E quantos anos tem agora esse homem?
— Julgo que não deve ter mais de trinta anos, irmão.
— Dirias que a cor dessa mancha está entre o verde e o azul?
— Sim, sim! — o inglês não conseguia conter a excitação.
O velho monge voltou a sentar-se no cadeirão. Ficou a olhar para George por uns momentos com um ar ausente.
— Estamos a falar de um imortal, irmão? — tornou a perguntar o inglês.
— Ouve isto com atenção, meu filho. Todos os homens, incluindo os soldados romanos que O fustigaram com o flagrum[2] e que O pregaram na cruz, as filhas de Jerusalém, todas as mulheres presentes na multidão que viram Jesus a carregar a Cruz desde o Pretório de Pilatos até o monte Calvário, aquilo a que chamamos de Via Sacra — o monge fez aqui uma curta pausa para olhar para o Cristo Crucificado —, todos aqueles cujos rostos foram salpicados com o sangue de Jesus, todos os seus descendentes tornaram-se αθάνατος, isto é, estão condenados a viver para sempre e sem remissão. Essas crianças nascem com uma mancha vermelha e redonda na testa sob a sobrancelha esquerda. Esta é a sua marca, é marca inegável que nunca haverão de morrer.

George daria tudo para poder acender um cigarro naquele momento de tão excitado que estava. À falta de melhor, deu umas baforadas com a sua mente durante meio minuto, descreveu um círculo quase perfeito no meio da sala com um à-vontade que desconcertou ligeiramente o velho monge e acenou com a cabeça várias vezes ao recordar o seu primeiro encontro com um struldbrug.
Era meia-noite quando o jovem George se deu conta que estava perdido no meio das ruínas da abadia de Reading com "As Viagens de Gulliver" enfiadas debaixo do braço. Por essa altura, o moço procurava algo que ele próprio não sabia o que era. Reparou num velho mendigo que por ali andava e que estremecia sempre que dava um passo. Trazia uma espécie de manto vermelho bastante surrado sobre as costas e picava as pedras do chão com uma estranha bengala. O mancebo estava a gozar a sua primeira licença da Academia; antes de sair do pub, pedira duas chávenas de café com leite que segundo o seu tio Laurence, irmão do seu pai, "faz muito bem à consumpção, mas para tal é necessário que o café e o leite sejam fervidos já misturados, de outra forma será apenas café e leite", e como não tinha sono, resolveu passear e apanhar o ar da noite. Os seus passos levaram-no ao local onde há muito tempo se ergueu uma abadia que tinha sido mandada construir por Henrique I no século XII. O velho parecia estar a murmurar uma cantilena monocórdica e quando finalmente saiu da sombra, George ficou aterrorizado com o que viu: além das deformidades comuns devido à velhice extrema, o rosto do homem era demasiado horrível para ser descrito. Quase não tinha cabelo, a testa era impossível sequer de ser classificada, as unhas eram amarelas e enormes e caminhava com o peso do mundo às costas, ou pelo menos, com o peso da Grã-Bretanha toda. Não tinha lábios, a boca estava sugada pelo tempo e rabujava qualquer coisa parecida com isto:
 “The White Ship (...), the hell with it, my dearest son, my poor boy (...) William, it should've been me! It should've been me! Anarchy in this miserable land, anarchy until this very day![3]
O velho mendigo foi levado pelas sombras e George ficou tão impressionado que resolveu abandonar imediatamente aquele local. Mais tarde, George pôde confirmar com segurança aquilo que suspeitara quando o velho doido proferiu aquela ladainha com a sua voz de sepulcro. O velho mendigo não era senão o "Beauclerc", o rei Henrique I. Foi o primeiro struldbrug com o qual George se cruzou. E logo um rei! O referido William, era Guilherme Adelin, o seu filho legítimo, que morrera em 1120 nas águas do Canal da Mancha, ao largo da Normandia. O rei declinou o convite do capitão Thomas FitzStephen, pois tinha outros assuntos a tratar. Nesse naufrágio, morreram ainda três dos seus irmãos bastardos incluindo Maud, a condessa de Perches e dezenas, talvez até centenas de nobres ingleses. O único sobrevivente, um perfeito desconhecido até aos dias de hoje, disse que estavam todos bêbados quando o barco foi ao fundo. Aproveito aqui para listar alguns nomes em jeito de homenagem sentida a todos esses homens e mulheres que morreram de uma maneira tão nobre e tão patriótica:
    William the Atheling, filho de rei Henrique I e herdeiro do trono de Inglaterra
    Matilda du Perche, Condessa de Perche, filha ilegítima do rei Henrique I
    Richard of Lincoln, filho ilegítimo de rei Henrique I
    Godfrey de l’Aigle, cavaleiro
    Engenulf de l’Aigle, irmão de Godfrey
    Matilda of Blois, irmã de Stephen de Blois, rei de Inglaterra e mulher de Richard d’Avranches
    Robert Mauduit, nobre
    Richard d’Avranches, 2º Conde de Chester, nobre
    Outher d’Avranches, irmão de Richard, conde de Chester
    Geoffrey Ridell, Lorde Chanceler, nobre
    Ottuel, meio-irmão ilegítimo do 2º Conde de Chester
    Hugh of Moulins, nobre
    Walter of Everci, nobre
    Lucia Mahout, mulher do 2º conde de Chester
    Othver, tutor do Príncipe William
    William Pirou, o steward do rei
    Geoffrey, arcebispo de Hereford.
    Richard Anskill, filho e herdeiro de uma propriedade de Berkshire
    Capitão Thomas FitzStephen, comandante do navio
    William Grandmesnil, nobre.

— Meu Deus! — exclamou George com os três olhos a brilhar — É como conhecer um músico virtuosíssimo, alguém que sabe tocar maravilhosamente um gigantesco piano de cauda criado por si e que poderá tocá-lo até ao fim da Humanidade, um piano especial, um piano com infinitas teclas brancas e pretas, talvez até tivesse teclas cinzentas dos mais variados tons que reproduzissem notas nunca antes escutadas, acidentes de acidentes, milhares de consonâncias e dissonâncias, talvez até concebesse oitenta oitavas! — disse o inglês, extremamente excitado com a metáfora mais ou menos feliz que acabara de criar.
Algo na cara do monge denunciou a impressão causada por este pensamento; George foi obrigado a refrear o seu ânimo e a adoptar um comportamento mais discreto. Afinal ainda estava na casa de Deus.
— George — o monge fez uma pequena pausa —, sabes tão bem quanto eu que um αθάνατος é uma criatura amaldiçoada. Não há maior maldição do que viver até ao fim da humanidade, como tu dizes, ver todos os seus filhos, netos, bisnetos, enfim todas as pessoas queridas que nasceram muito depois dele a partirem quando a sua hora, a hora do patriarca, já deveria ter chegado há muito tempo — e continuou. — Pensa na profunda tristeza, no infindável estado de amargura que essa pessoa poderá sentir quando a sua pátria for anexada ou subjugada por outra nação de uma forma ou de outra. Sim, George, é muito provável que isso possa vir a acontecer e nem sequer precisamos de viver para sempre, pensa nas guerras, nas pestes, na mortandade que esse infeliz terá de assistir. Com certeza que poderá tornar-se no homem mais sábio do mundo, mas...a que preço? A custo de quanto sofrimento? Apenas Deus é eterno, meu filho, só Deus é infinitamente sábio, o homem deve reger-se sempre pela sua lei para quando chegar o seu fim Lhe entregar a sua alma. Um αθάνατος não tem alma. A sua vida é um interminável flagelo, a sua vida será sempre o Purgatório na terra!
O monge empregou toda a oratória adquirida ao longo dos anos de celebração de extensas liturgias que convidam o fiel a olhar para dentro de si, usou sabiamente as palavras, os tons, os silêncios que prendem a atenção dos fiéis — partindo naturalmente do princípio que os fiéis são mesmo fiéis, que querem ser doutrinados e enlevados pelas palavras do monge e que não estão ali para admirar os magníficos ícones, a esplendorosa arte sacra da Igreja Ortodoxa.
George ainda queria fazer-lhe uma última pergunta, mas Crisóstomos, cansado, saboreava agora o silêncio daquele lugar santo com os olhos fechados, o inglês não teve coragem de o acordar. Levou a mão à sua cicatriz, deteve-se por uns momentos para tentar adivinhar a que espécie pertencia a testa do patriarca e deduziu que era “uma magnífica frons praeclara”.


[1]Imortal (grego).
[2] Chicote com várias tiras pesadas de couro com duas pequenas bolas de chumbo amarradas nas pontas de cada tira.
[3] O White Ship (...), para o inferno com ele! O meu querido filho, o meu pobre rapaz (...) William, deveria ter sido eu! Deveria ter sido eu! Anarquia sobre esta terra miserável, anarquia até aos dias de hoje!

quinta-feira, fevereiro 16, 2017

Molossia



Será que o sr. Trump vai mandar erguer um muro contra os emigrantes ilegais desta pequena grande nação?

terça-feira, fevereiro 14, 2017

quarta-feira, fevereiro 01, 2017

A Terinha



Disse-vos que já não vivia ninguém na Viela dos Gatos (excepto a Elmirinha dos Gatos), mas enganei-me. Ainda há muitas pessoas a morarem na viela. Uma delas é a Quitéria que é amiga de infância da minha mãe e que, de vez em quando, vem cá a casa. Gostam muito de conversar uma com a outra e quando a minha mãe não está a fazer queixa do meu pai, trocam anedotas e riem-se muito. Uma vez ouvi a minha mãe a dizer à Quitéria para parar porque ela já tinha feito "chichi na cuecas, já me mijei toda".

Foi a Quitéria que me ensinou a dizer palavrões. “Mamã “ e “papá” vinham sempre seguidos de coisas não muito bonitas de se dizerem. Eu parecia um papagaio, a minha mãe chamava-me logo à atenção para não repetir aquilo que a Quitéria me pedia para dizer. A Quitéria divertia-se bastante com isso. Ela dizia-o meio a sério, meio a brincar, a minha mãe não ficava zangada de verdade, só que eu ficava confuso e acabava por repetir palavrões com mais vontade ainda. A minha mãe não a chamava de “Quitéria”, trata-a por Tera, as outras pessoas do Monte chamam-na de Terinha. Acho que não deveria ter ainda sete anos quando a vi pela primeira vez. Lembro-me que fiquei muito espantado. Na altura, pensei que ela trazia um bebé escondido nas costas sob um casaco de malha. Nesse dia, perguntei à minha mãe porque é que a Terinha estava a esconder um bebé nas costas. Normalmente, as outras mulheres traziam os bebés na barriga. A minha mãe lá me explicou que ela não estava a esconder nada, a Terinha tinha uma marreca por causa de um acidente que teve em pequena. Fiquei muito impressionado e tive pena da Terinha. A partir desse dia, oferecia-lhe sempre um copo de vinho sempre que ela vinha cá a casa.

Eu queria crescer à força toda, mas quando a Terinha nos visitava ou quando a minha mãe me pedia para ir a casa dela entregar uma peça de costura, eu fazia-me mais pequeno do que era, agachava-me. Não gostava de mostrar a minha altura normal perto da Terinha, sentia-me mal. Não aguentava por muito tempo, as minhas pernas começavam logo a tremer e a doer e eu tinha de ir para outro lado. Quando me cruzava com ela na rua, era pior, tentava manter as pernas dobradas, como se fossem aspas, tinha receio que ela se virasse de repente e descobrisse a minha altura verdadeira. Mais tarde, apercebi-me de que ela achava piada àquilo e continuei a andar agachado na presença dela só para a agradar. Até que, de um dia para o outro, ela deixou de achar piada e lançava-me uns olhares muito sérios, muito frios quando me via, parecia que estava à procura de algo dentro dos meus olhos; fiquei muito perturbado com este novo olhar da Terinha, não consegui encará-la e deixei de fazer a pantominice do costume. Afinal de contas era quase um homem (ou um pito-galo como me chamava a minha avó). Assumi a minha altura sem medos, ganhei ali três, quatro anos, fiquei dois palmos mais alto do que ela. Mas a Terinha continuava a olhar muito séria para mim, sem abrir a boca.

Numa tarde, estávamos apenas os dois na cozinha de minha casa, a minha mãe tinha ido ao quarto buscar não sei o quê, e fiquei sem saber o que fazer. Fiz de conta de que não queria saber o que ela poderia pensar de mim, ignorei-a, encenei uma pose arrogante, como se fosse um pavão, saí devagar da beira dela e fui para o quarto. Ouvi a minha mãe a chamar a amiga do quarto dos meus pais e ela foi ter com a minha mãe. Saí do meu quarto em bicos de pés e espreitei pela frincha da porta do quarto dos meus pais e então vi a Terinha a tirar a camisa para vestir outra, a minha mãe segurava alfinetes na boca, ia provar-lhe uma camisa, mas não vi nenhuma marreca. O que eu vi foi uma segunda cabeça na parte de cima das costas que se elevava mais abaixo da nuca da primeira, mas esta cabeça não tinha nem nariz, nem boca, nem orelhas, era completamente careca como uma bola de bilhar.

E agora, preparem-se, já sei que não vão acreditar em mim, mas não quero saber, vou dizer-vos o que é que aquela segunda cabeça tinha: um par de olhos, dois terríveis olhos negros que se abriram e me olharam de volta. A minha mãe não deu conta, a Terinha tentava estar sempre de frente para a minha mãe para que ela não visse aquela terrível cabeça. Fiquei aterrorizado, encolhi-me todo, encostei a porta, fugi em bicos de pés pelo corredor e fechei-me no quarto.

Não consegui dormir bem nessa noite, a minha cabeça estava em pantanas por causa daquele par de olhos extra da Terinha, aqueles que mais ninguém sabia que existiam, aqueles terríveis olhos, duas ranhuras negras que saíam das costas daquele corpo franzino e que me viram a espreitar para dentro do quarto. Vira para um lado, vira para o outro, não conseguia adormecer, porque é que eu fui fazer aquilo, a Terinha nunca me fez mal nenhum, antes pelo contrário (e nem eu a ela!). Porque é que ela me pregou aos azulejos da cozinha com aquele olhar sério e triste e depois fulminou-me com os olhos escondidos. Não havia maneira daquilo me sair da cabeça naquela noite. Foi a primeira vez que fingi sentir algo que na verdade não sentia, foi a primeira vez que fiz pose para alguém, que me armei em "cagão" como se costuma chamar aqui no Monte às pessoas que têm a mania.

As coisas nunca mais foram as mesmas entre mim e a Terinha. Ela evita-me e eu evito-a também; quando sei que ela vem aqui a casa, pisgo-me logo para as Azenhas para ir jogar bola com a malta. Nunca contei à minha mãe nem a ninguém aquilo que vi pela fechadura do quarto naquela tarde de domingo. Estou a fazê-lo pela primeira vez.