terça-feira, julho 26, 2016

SAL


Para o meu pai*

Perdi uma aposta com o Jorge Tainha. Como não consegui morder os meus próprios cotovelos, fiquei frustrado e resolvi morder os cotovelos da Sílvia, ela mora mesmo à nossa frente com os pais e com o irmão. Bom, para dizer a verdade, não os mordi, trinquei um dos cotovelos ao de leve e depois lambi-o, reparei que os cotovelos dela estavam muito secos, e não é que consegui, ela estava de costas para mim. Pensava que lhe estava a fazer um favor, mas não, ela ficou danada, quase que me arrancava o nariz com as suas garras afiadas, quase fazia carne picada com a minha cara, tive de trepar o Muro num fôlego.

O Muro rodeia o Quintal do Mota que é uma espécie de condado portucalense, com o Monte de um lado e os armazéns do vinho do Porto do outro; não há mar aqui, apenas o Douro que fica lá em baixo. É a melhor vista do mundo. Uma vez, a Sílvia rachou a cabeça ao Jorge Tainha e foi bem feito, o Tainha às vezes tem a mania que é tubarão (mas não passa de uma tainha) e oferece porrada a toda a gente. Ela nem sequer o avisou, largou chispas dos olhos, olhou para o chão, pegou no primeiro calhau que viu e fshhhh e poc!, acertou-lhe mesmo no meio daquela testa cinzenta, o Tainha ficou a contorcer-se no chão e depois desmaiou. A Guidinha, mãe da Sílvia, teve de despejar um balde de tintura de iodo sobre a cabeça do Jorge Tainha que se pôs logo de pé, subiu as escadas velhas do Monte como um salmão, por entre o ranço, o cascalho e as iúcas, meteu-se em casa e ninguém lhe pôs a vista em cima durante quase um mês. E claro, aqui no Monte, quando os filhos se pegam, as mães também se pegam, e as duas mães, a Guidinha e a Maria Tainha, depois da tradicional troca de insultos, agarraram-se pelos cabelos, quase que se comiam uma à outra, trincadelas, chapadas, mas a briga não durou muito, foi coisa de dez minutos, saíram exaustas da pequena arena feita de propósito para estas desavenças, um terreiro poeirento em frente à casa da Martinha, rodeado por cardos e silvas para as mulheres não saírem à primeira chapada, a canalha e as outras mulheres a gritarem cá fora, os ânimos ficam sempre bastante exaltados. Acho que houve um empate técnico, ambas abandonam a arena com lanhos e pisaduras nas pernas, nos braços, na cara, de olhos vermelhos, quase a chorarem, ainda com tufos de cabelo da adversária nas mãos. Desinfectaram as suas feridas com uma esponja embebida em vinagre, comeram um prato de "galinha" que alguém lhes trouxe para recuperarem as forças ("galinha" não é carne de galinha, é um prato de quartos de cebola a nadarem num prato de vinho tinto, é o petisco mais apreciado por estas bandas) e mataram a sede com uma garrafa de vinho do bom, mereceram-no. As mulheres aqui também bebem e não é coisa pouca. Depois cada uma foi para sua casa, o espectáculo desse dia terminou. Não passa uma semana sem que haja um combate de mulheres na pequena arena do Monte.

Bom, ainda estou em cima do muro, e ainda por cima estou sozinho, não tenho nenhum ovo falante ao meu lado para me fazer companhia. Estou a olhar para baixo, a Sílvia ainda está lá em baixo com cara de poucos amigos. Apesar de me ter transformado num gato preto – sim, também consigo fazer isto quando tenho medo -, ela sabe que sou eu.

De um momento para o outro, levantou-se um nevoeiro cerrado, Porto e Gaia começam a desaparecer aos poucos. Uma espessa cortina cinzenta desce lentamente sobre as duas cidades, mas ainda consigo ver uma nesga do rio. Tento rasgar uma nuvem desmaiada com as patas para ver melhor para dentro do Muro, para o Quintal do Mota. Uma macieira que dá maçãs-de-adão e que os rapazes do Monte adoram comer para se tornarem homens mais depressa, uma nespereira que não dá frutos há já alguns anos, porque fartou-se de ser roubada pelos rapazes (qualquer dia o velho Mota, o dono do Quintal, prega-lhe umas machadadas), uma velha laranjeira rancorosa por os rapazes preferirem os frutos da macieira e da nespereira e que por isso só dá limões.

Encostado a um velho barracão, está o guarda-fiscal Oliveira, um dos caseiros do Quintal, em mangas de camisa. Está sentado numa albarda que, por sua vez, está sobre um banquinho de madeira. Está a ler, parece muito compenetrado, nem parece ele, o cotovelo apoiado no joelho e o punho a segurar o rosto magro, está a ler um calhamaço em voz baixa. Tal como um gato que acaba de ver outro gato rival, rastejo muito devagar pela crista do muro, olho de lado para o guarda-fiscal, depois rodo muito lentamente a cabeça para o encarar e aninho-me. Se quisesse, podia atacá-lo de surpresa. Àquela distancia e com o nevoeiro não conseguia ler o título do livro, tive de rasgar de vez a nuvem que desmaiou mesmo em cima de mim e arrancar uma lente de uma luneta que protegia o topo do muro para poder enxergar melhor. A capa dizia "A Vida Heroica do XIII Conde de Penafiel" ou algo assim. O guarda-fiscal Oliveira é de Penafiel. Ora sorria, ora punha-se muito sério, tirava o seu quepe de guarda-fiscal, coçava a linha vermelha do quepe na testa, tornava a atarraxar o quepe na cabeça pequena, pôs um rótulo a marcar a página e fecha o livro com muita convicção. Levanta-se, saca de um maço de tabaco do bolso de trás das calças, a ponta do cigarro acende-se sozinha e deixa ficar o cigarro a dançar na boca. Afasta um pequeno muro de hortênsias murchas com as mãos, caem pétalas aos seus pés. Fica a olhar muito pensativo para a Ponte D. Luís, ou melhor, para a mancha arqueada que penso ser a ponte, o nevoeiro está cada vez mais cerrado. Põe-se em bicos de pés e espreita para o socalco da parte de baixo do Quintal. Torna a olhar para a ponte e novamente para o socalco. A horta do seu vizinho e eterno arqui-inimigo, o guarda-fiscal Monteiro, ocupa todo aquele socalco e dá as melhores alfaces e os melhores feijões do Monte. Os estores da casa do Monteiro estão corridos, algumas das "réguas" estão partidas, mas isso não quer dizer que ele e a mulher não estejam em casa; os estores estão escangalhados há muito tempo, o Monteiro pode muito bem estar a espreitar cá para fora por entre os buraquinhos das "réguas". Os dois guardas-fiscais já foram grandes amigos, são os dois da mesma terra e tudo, mas agora não se podem ver um ao outro, não sei bem porquê.

Já tenho os olhos rasos em lágrimas e começo a bater os dentes, está cada vez mais frio. O Oliveira vai para dentro e regressa pouco depois com aquilo que parece ser um saco de arroz. Desce metade da escadaria de cimento junto à casa e começa a atirar grãos de arroz para a horta do outro como se estivesse num casamento, só que os noivos aqui eram as alfaces e quando acaba o arroz, atira o saco vazio lá para o meio, ajeita o quepe, sobe os degraus de cimento, o caramanchão da videira escurece-o, entra e bate a porta com força. Os dois dividem a mesma casa cor-de-rosa, só que um mora no piso de cima e o outro no de baixo. Tenho os braços gelados, já estou com pele de galinha, sabia-me pela vida agora um copito para aquecer. Estou quase a saltar do Muro para regressar também a casa. A Sílvia já se foi embora. Eis que surge na parte de baixo do Quintal uma misteriosa luz vermelha. A luz tenta furar o nevoeiro, bamboleia-se, aproxima-se da horta. Dou por mim a dar à cauda, furtivo, já consigo ver melhor. Era o guarda-fiscal Monteiro, com o seu andar desajeitado, também em mangas de camisa. Não sei como é que ele não tem frio. Vem a segurar uma lanterna como se fosse um ferroviário das Devesas a fazer sinais para um comboio que se aproxima lentamente da estação. Usa também um quepe, vem com cara de poucos amigos (ou nenhuns), pousa a lanterna no chão e agacha-se junto dos regos da horta. Leva à boca um grão de arroz e faz uma cara ainda mais feia, começa a gritar a plenos pulmões, por entre a bruma:

- Sal, cabrão, sal?! Puseste-me sal nas alfaces!? Ó meu desgraçado, eu fodisco-te, vais ver, não perdes pela demora. Sal! Sal! Sai se és homem, sai do buraco, cobarde! – gritava o Monteiro enquanto ameaçava a janela do Oliveira de punho cerrado e dava socos na própria cabeça, a cara do Monteiro ficou roxa de raiva como uma beringela, ou como, como...uma couve-roxa. 

Do outro nem uma nem duas. Era normal haver estas discussões-monólogos entre os dois. O pequeno caso do sal nas alfaces morreu ali, o Monteiro foi para dentro, com certeza foi planear a sua vingança. Estiquei as patas, já me doíam por estar tanto tempo aninhado. Desci pela parte mais baixa do muro forrado de musgo, fiquei com a cara molhada por causa da morrinha que começou a cair, pareciam confetes de água. Entrei em casa com o pingo no nariz. 

Ora bem, "sal" era também aquilo que o meu pai pedia aos berros à minha mãe na hora do jantar, eram autênticas chicotadas no ar, a comida estava outra vez insossa, mas era para o bem dele, só que o homem não entendia isso. O palato do meu pai estava avariado por uma vida de vinhaça e de comida salgada. A minha mãe chegou-lhe o saleiro, virou-lhe costas e disse "envenena-te para aí, quero lá saber" (não é bem assim, no fundo, ela preocupa-se com ele), mas o meu pai encolheu os ombros e fez uma pequena pirâmide de sal que cobriu o arroz com ervilhas e a costeleta. Continuou a comer agora já muito mais consolado. O meu pai não tem medo do que lhe possa vir acontecer, despreza os malefícios do sal. Às vezes, chego a pensar que o corpo do meu pai é como o rio Douro, manda toda a porcaria para as margens, liberta-se de tudo aquilo que não é seu, vomita todos os objectos estranhos para a praia da Cruz ou para o Cabedelo. O fundo do rio não consegue engolir todo o lixo que as pessoas atiram para a água; com o corpo do meu pai é igual; é uma espécie de rio que – até ao dia de hoje - arranja sempre maneira de se ver livre do sal. Passou o dia seguinte com a língua de fora, como se fosse um canito num dia tórrido, o sal chupa-nos a água toda do corpo. Ainda assim, mandou abaixo meio garrafão de tinto e nem uma pinga de água levou à boca para matar a sede.

E quanto aos dois guardas-fiscais? Ah querem mesmo saber? Não, não se mataram à dentada ou arrancaram o coração um ao outro. Na semana a seguir ao incidente do "sal nas alfaces", fui buscar um garrafão de vinho à Loja a mando do meu pai e lá estavam os dois agentes da autoridade agarrados um ao outro, perdidos de bêbados, todos babados, a discutirem quem é que iria pagar a vigésima primeira rodada. O vinho tem destas coisas. Ora, se isto não é um final feliz, vou ali e já venho.

*Obrigado pelos bons momentos e por todas as vezes que me fizeste rir, pai. Senti por fim o teu amor nos teus últimos anos.