Para o meu pai*
Perdi uma aposta com o
Jorge Tainha. Como não consegui morder os meus próprios cotovelos,
fiquei frustrado e resolvi morder os cotovelos da Sílvia, ela mora mesmo
à nossa frente com os pais e com o irmão. Bom, para dizer a verdade,
não os mordi, trinquei um dos cotovelos ao de leve e depois lambi-o,
reparei que os cotovelos dela estavam muito secos, e não é que consegui,
ela estava de costas para mim. Pensava que lhe estava a fazer um favor,
mas não, ela ficou danada, quase que me arrancava o nariz com as suas
garras afiadas, quase fazia carne picada com a minha cara, tive de
trepar o Muro num fôlego.
O Muro rodeia o Quintal do Mota que
é uma espécie de condado portucalense, com o Monte de um lado e os
armazéns do vinho do Porto do outro; não há mar aqui, apenas o Douro que
fica lá em baixo. É a melhor vista do mundo. Uma vez, a Sílvia rachou a
cabeça ao Jorge Tainha e foi bem feito, o Tainha às vezes tem a mania
que é tubarão (mas não passa de uma tainha) e oferece porrada a toda a
gente. Ela nem sequer o avisou, largou chispas dos olhos, olhou para o
chão, pegou no primeiro calhau que viu e fshhhh e poc!, acertou-lhe mesmo no meio daquela testa cinzenta, o Tainha ficou a contorcer-se no chão e depois desmaiou. A Guidinha,
mãe da Sílvia, teve de despejar um balde de tintura de iodo sobre a
cabeça do Jorge Tainha que se pôs logo de pé, subiu as escadas velhas do
Monte como um salmão, por entre o ranço, o cascalho e as iúcas,
meteu-se em casa e ninguém lhe pôs a vista em cima durante quase um mês.
E claro, aqui no Monte, quando os filhos se pegam, as mães também se
pegam, e as duas mães, a Guidinha e a Maria Tainha, depois da
tradicional troca de insultos, agarraram-se pelos cabelos, quase que se
comiam uma à outra, trincadelas, chapadas, mas a briga não durou muito,
foi coisa de dez minutos, saíram exaustas da pequena arena feita de
propósito para estas desavenças, um terreiro poeirento em frente à casa
da Martinha, rodeado por cardos e silvas para as mulheres não saírem à
primeira chapada, a canalha e as outras mulheres a gritarem cá fora, os
ânimos ficam sempre bastante exaltados. Acho que houve um empate
técnico, ambas abandonam a arena com lanhos e pisaduras nas pernas, nos
braços, na cara, de olhos vermelhos, quase a chorarem, ainda com tufos
de cabelo da adversária nas mãos. Desinfectaram as suas feridas com uma
esponja embebida em vinagre, comeram um prato de "galinha" que alguém
lhes trouxe para recuperarem as forças ("galinha" não é carne de
galinha, é um prato de quartos de cebola a nadarem num prato de vinho
tinto, é o petisco mais apreciado por estas bandas) e mataram a sede com
uma garrafa de vinho do bom, mereceram-no. As mulheres aqui também
bebem e não é coisa pouca. Depois cada uma foi para sua casa, o
espectáculo desse dia terminou. Não passa uma semana sem que haja um
combate de mulheres na pequena arena do Monte.
Bom, ainda estou em cima do muro, e ainda por cima estou sozinho, não tenho nenhum ovo falante
ao meu lado para me fazer companhia. Estou a olhar para baixo, a Sílvia
ainda está lá em baixo com cara de poucos amigos. Apesar de me ter
transformado num gato preto – sim, também consigo fazer isto quando
tenho medo -, ela sabe que sou eu.
De um momento para o
outro, levantou-se um nevoeiro cerrado, Porto e Gaia começam a
desaparecer aos poucos. Uma espessa cortina cinzenta desce lentamente
sobre as duas cidades, mas ainda consigo ver uma nesga do rio. Tento
rasgar uma nuvem desmaiada com as patas para ver melhor para dentro do
Muro, para o Quintal do Mota. Uma macieira que dá maçãs-de-adão e que os
rapazes do Monte adoram comer para se tornarem homens mais depressa,
uma nespereira que não dá frutos há já alguns anos, porque fartou-se de
ser roubada pelos rapazes (qualquer dia o velho Mota, o dono do Quintal,
prega-lhe umas machadadas), uma velha laranjeira rancorosa por os
rapazes preferirem os frutos da macieira e da nespereira e que por isso
só dá limões.
Encostado a um velho barracão, está o guarda-fiscal Oliveira,
um dos caseiros do Quintal, em mangas de camisa. Está sentado numa
albarda que, por sua vez, está sobre um banquinho de madeira. Está a
ler, parece muito compenetrado, nem parece ele, o cotovelo apoiado no
joelho e o punho a segurar o rosto magro, está a ler um calhamaço em voz
baixa. Tal como um gato que acaba de ver outro gato rival, rastejo
muito devagar pela crista do muro, olho de lado para o guarda-fiscal,
depois rodo muito lentamente a cabeça para o encarar e aninho-me. Se
quisesse, podia atacá-lo de surpresa. Àquela distancia e com o nevoeiro
não conseguia ler o título do livro, tive de rasgar de vez a nuvem que
desmaiou mesmo em cima de mim e arrancar uma lente de uma luneta que
protegia o topo do muro para poder enxergar melhor. A capa dizia "A Vida Heroica do XIII Conde de Penafiel"
ou algo assim. O guarda-fiscal Oliveira é de Penafiel. Ora sorria, ora
punha-se muito sério, tirava o seu quepe de guarda-fiscal, coçava a
linha vermelha do quepe na testa, tornava a atarraxar o quepe na cabeça
pequena, pôs um rótulo a marcar a página e fecha o livro com muita
convicção. Levanta-se, saca de um maço de tabaco do bolso de trás das
calças, a ponta do cigarro acende-se sozinha e deixa ficar o cigarro a
dançar na boca. Afasta um pequeno muro de hortênsias murchas com as
mãos, caem pétalas aos seus pés. Fica a olhar muito pensativo para a
Ponte D. Luís, ou melhor, para a mancha arqueada que penso ser a ponte, o
nevoeiro está cada vez mais cerrado. Põe-se em bicos de pés e espreita
para o socalco da parte de baixo do Quintal. Torna a olhar para a ponte e
novamente para o socalco. A horta do seu vizinho e eterno
arqui-inimigo, o guarda-fiscal Monteiro, ocupa todo aquele
socalco e dá as melhores alfaces e os melhores feijões do Monte. Os
estores da casa do Monteiro estão corridos, algumas das "réguas" estão
partidas, mas isso não quer dizer que ele e a mulher não estejam em
casa; os estores estão escangalhados há muito tempo, o Monteiro pode
muito bem estar a espreitar cá para fora por entre os buraquinhos das
"réguas". Os dois guardas-fiscais já foram grandes amigos, são os dois
da mesma terra e tudo, mas agora não se podem ver um ao outro, não sei
bem porquê.
Já tenho os olhos rasos em lágrimas e começo a bater os dentes, está cada vez mais frio. O Oliveira vai para dentro e regressa pouco depois com aquilo que parece ser um saco de arroz. Desce metade da escadaria de cimento junto à casa e começa a atirar grãos de arroz para a horta do outro como se estivesse num casamento, só que os noivos aqui eram as alfaces e quando acaba o arroz, atira o saco vazio lá para o meio, ajeita o quepe, sobe os degraus de cimento, o caramanchão da videira escurece-o, entra e bate a porta com força. Os dois dividem a mesma casa cor-de-rosa, só que um mora no piso de cima e o outro no de baixo. Tenho os braços gelados, já estou com pele de galinha, sabia-me pela vida agora um copito para aquecer. Estou quase a saltar do Muro para regressar também a casa. A Sílvia já se foi embora. Eis que surge na parte de baixo do Quintal uma misteriosa luz vermelha. A luz tenta furar o nevoeiro, bamboleia-se, aproxima-se da horta. Dou por mim a dar à cauda, furtivo, já consigo ver melhor. Era o guarda-fiscal Monteiro, com o seu andar desajeitado, também em mangas de camisa. Não sei como é que ele não tem frio. Vem a segurar uma lanterna como se fosse um ferroviário das Devesas a fazer sinais para um comboio que se aproxima lentamente da estação. Usa também um quepe, vem com cara de poucos amigos (ou nenhuns), pousa a lanterna no chão e agacha-se junto dos regos da horta. Leva à boca um grão de arroz e faz uma cara ainda mais feia, começa a gritar a plenos pulmões, por entre a bruma:
- Sal, cabrão, sal?! Puseste-me sal nas alfaces!? Ó meu desgraçado, eu fodisco-te,
vais ver, não perdes pela demora. Sal! Sal! Sai se és homem, sai do
buraco, cobarde! – gritava o Monteiro enquanto ameaçava a janela do
Oliveira de punho cerrado e dava socos na própria cabeça, a cara do
Monteiro ficou roxa de raiva como uma beringela, ou como, como...uma
couve-roxa.
Do outro nem uma nem
duas. Era normal haver estas discussões-monólogos entre os dois. O
pequeno caso do sal nas alfaces morreu ali, o Monteiro foi para dentro,
com certeza foi planear a sua vingança. Estiquei as patas, já me doíam
por estar tanto tempo aninhado. Desci pela parte mais baixa do muro
forrado de musgo, fiquei com a cara molhada por causa da morrinha que
começou a cair, pareciam confetes de água. Entrei em casa com o pingo no
nariz.
Ora bem, "sal" era
também aquilo que o meu pai pedia aos berros à minha mãe na hora do
jantar, eram autênticas chicotadas no ar, a comida estava outra vez
insossa, mas era para o bem dele, só que o homem não entendia isso. O
palato do meu pai estava avariado por uma vida de vinhaça e de comida
salgada. A minha mãe chegou-lhe o saleiro, virou-lhe costas e disse
"envenena-te para aí, quero lá saber" (não é bem assim, no fundo, ela
preocupa-se com ele), mas o meu pai encolheu os ombros e fez uma pequena
pirâmide de sal que cobriu o arroz com ervilhas e a costeleta.
Continuou a comer agora já muito mais consolado. O meu pai não tem medo
do que lhe possa vir acontecer, despreza os malefícios do sal. Às vezes,
chego a pensar que o corpo do meu pai é como o rio Douro, manda toda a
porcaria para as margens, liberta-se de tudo aquilo que não é seu,
vomita todos os objectos estranhos para a praia da Cruz ou para o Cabedelo.
O fundo do rio não consegue engolir todo o lixo que as pessoas atiram
para a água; com o corpo do meu pai é igual; é uma espécie de rio que –
até ao dia de hoje - arranja sempre maneira de se ver livre do sal.
Passou o dia seguinte com a língua de fora, como se fosse um canito num
dia tórrido, o sal chupa-nos a água toda do corpo. Ainda assim, mandou
abaixo meio garrafão de tinto e nem uma pinga de água levou à boca para
matar a sede.
E quanto aos dois
guardas-fiscais? Ah querem mesmo saber? Não, não se mataram à dentada ou
arrancaram o coração um ao outro. Na semana a seguir ao incidente do
"sal nas alfaces", fui buscar um garrafão de vinho à Loja a mando do meu
pai e lá estavam os dois agentes da autoridade agarrados um ao outro,
perdidos de bêbados, todos babados, a discutirem quem é que iria pagar a
vigésima primeira rodada. O vinho tem destas coisas. Ora, se isto não é
um final feliz, vou ali e já venho.
*Obrigado pelos bons momentos e por todas as vezes que me fizeste rir, pai. Senti por fim o teu amor nos teus últimos anos.