Em vez de entrar no café-hostal de cujo o nome não quero agora lembrar-me, resolvi atravessar a carretera para conhecer o lar onde estava o meu avô. O autocarro tinha parado para os passageiros comerem algo e só arrancava dentro de meia-hora. Daqui a duas horas e meia estava em Granada. Tirei a última bolacha do pacote que tinha comprado em Madrid. A bolacha sabia a plástico e eu não tinha apetite, apenas queria ter um ar descontraído enquanto me aproximava do lar. Ao lado, havia uma estação de serviço abandonada. Um homem de camisa preta estava encostado a um Renault velho e parecia estar à espera de ser atendido. O homem era muito parecido com um Steven Seagal mais novo e mais magro, talvez.
A maioria dos passageiros ainda estava no café e parecia estar a decorrer lá dentro um concurso para ver quem conseguia falar mais alto. A mulher que viajava atrás de mim também descera do autocarro e estava a seguir-me com o olhar enquanto fumava. Usava um casaco de ganga cor-de-rosa e uns tacões altos que eram desproporcionais à sua altura. As suas rugas de quase meia-idade disfarçadas com creme e os papos à volta dos olhos não se viam deste lado da estrada.
A porta de entrada do lar estava ladeada por duas grandes ânforas. A fachada era branca e tinha canteiros de gerânios e pequenos cactos. Mais abaixo, à face da estrada, uma placa enorme dizia:
Residência Geriátrica "Dom Quijote"
Mensalidades que cabem no seu bolso
Dispomos de veículo próprio e enfermaria 24h
10% de Desconto no primeiro semestre
Telf. xxxxxxxxx
Assim que entrei, o ar ficou mais fresco, mas havia um forte cheiro a naftalina em todo o hall. Aproximei-me da porta de vidro que dava acesso ao salão principal. Já não via o meu avó há cinco anos, mas acho que o reconheceria se o visse. Não abri a porta e, através do vidro, tentei localizá-lo. Sem saber bem porquê comecei a contá-los. Vinte e um. Estavam sentados em elipse e estavam a encher balões coloridos de aniversário. Um deles parou de repente e olhou para mim. Dei um passo atrás. Não consegui distinguir se era um "ele" ou uma "ela". A pele do seu rosto parecia um favo de mel seco e tinha apenas uns fios brancos de cabelo. Todos deixaram de soprar e os que estavam de costas viram-se para trás com grande dificuldade. O silêncio foi quebrado por uma estupenda escarradela.
"Olá. Deseja alguma coisa?" - perguntou uma funcionária morena que parecia ter estado atrás de mim este tempo todo. Falava com sotaque sul-americano, era baixa e não tinha pescoço. O crachá que trazia ao peito dizia Dulcineia Gutierrez.
"Sim, procuro o meu avô."
"E como se chama o seu avô?"
"Alonso Hernandez. Ele tocava guitarra. Flamengo, essas coisas..."
"Senhor Hernandez, sim. Mas ele já não tocava guitarra. Entretinha-se nos últimos tempos a tocar um daqueles órgãos de brincar que um dos netos dos senhores se esqueceu aqui."
"Nos últimos tempos?..."
"Sim."
A moça não tinha pescoço nem expressão. Ficámos assim alguns instantes, a olhar um para o outro. Até que ela entrou no salão e fechou a porta. Saí e desci até à estrada que já deitava fumo aquela hora. Do outro lado da rua, o motorista estava a ver os pneus de trás, alguns passageiros já estavam cá fora. A mulher de casaco rosa tinha posto uns enormes óculos escuros. Ainda me virei para trás para voltar ao lar. O meu avô morreu. Não éramos chegados nem distantes. A minha mãe raramente falava dele.
Acendi um cigarro e caminhei até à bomba de gasolina. O chão estava coberto por manchas negras.
"!Hei, tio, que não podes fumar aqui, hei!"
Era o Steven Seagal a esbracejar. Ignorei-o e resolvi entrar no autocarro. A mulher do casaco cor-de-rosa apagou a sua cigarrilha com a sola e subiu atrás de mim. Sentou-se ao meu lado, pôs a mão no meu braço e disse-me algo que agora não quero lembrar-me.
A maioria dos passageiros ainda estava no café e parecia estar a decorrer lá dentro um concurso para ver quem conseguia falar mais alto. A mulher que viajava atrás de mim também descera do autocarro e estava a seguir-me com o olhar enquanto fumava. Usava um casaco de ganga cor-de-rosa e uns tacões altos que eram desproporcionais à sua altura. As suas rugas de quase meia-idade disfarçadas com creme e os papos à volta dos olhos não se viam deste lado da estrada.
A porta de entrada do lar estava ladeada por duas grandes ânforas. A fachada era branca e tinha canteiros de gerânios e pequenos cactos. Mais abaixo, à face da estrada, uma placa enorme dizia:
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"Olá. Deseja alguma coisa?" - perguntou uma funcionária morena que parecia ter estado atrás de mim este tempo todo. Falava com sotaque sul-americano, era baixa e não tinha pescoço. O crachá que trazia ao peito dizia Dulcineia Gutierrez.
"Sim, procuro o meu avô."
"E como se chama o seu avô?"
"Alonso Hernandez. Ele tocava guitarra. Flamengo, essas coisas..."
"Senhor Hernandez, sim. Mas ele já não tocava guitarra. Entretinha-se nos últimos tempos a tocar um daqueles órgãos de brincar que um dos netos dos senhores se esqueceu aqui."
"Nos últimos tempos?..."
"Sim."
A moça não tinha pescoço nem expressão. Ficámos assim alguns instantes, a olhar um para o outro. Até que ela entrou no salão e fechou a porta. Saí e desci até à estrada que já deitava fumo aquela hora. Do outro lado da rua, o motorista estava a ver os pneus de trás, alguns passageiros já estavam cá fora. A mulher de casaco rosa tinha posto uns enormes óculos escuros. Ainda me virei para trás para voltar ao lar. O meu avô morreu. Não éramos chegados nem distantes. A minha mãe raramente falava dele.
Acendi um cigarro e caminhei até à bomba de gasolina. O chão estava coberto por manchas negras.
"!Hei, tio, que não podes fumar aqui, hei!"
Era o Steven Seagal a esbracejar. Ignorei-o e resolvi entrar no autocarro. A mulher do casaco cor-de-rosa apagou a sua cigarrilha com a sola e subiu atrás de mim. Sentou-se ao meu lado, pôs a mão no meu braço e disse-me algo que agora não quero lembrar-me.