quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Confessionário


Marsden Hartley

Assumo sempre a minha sexualidade de chinelos e em dias ímpares. Tenho mais ralações sexuais do que relações e, já que pergunta, tenho quase a certeza que vou casar por Amor, mais cedo ou mais tarde.

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Pai

metade do corpo palpita estilhaços
a outra decompõe-se em sons gelados e secos
ainda se segura, curvado e inquieto

sapatos escuros espalhados pelo quarto
vê as paredes que lhe deram os filhos
e agora pede que o deixem em paz

encosta-se na coincidência dos dias
e dispara palavras bastardas de agonia
deixa um rasto de abandono
por portas entreabertas

o tempo acumula-se no pó
o Grande Aposento Real
insulta a caixa das cores
acha-se o último dos duros

tapa as memórias nas paredes
sente o pé dormente
pede algo a alguém
antes de fechar os olhos

não dorme
acorda
outra vez
o ultramar de sempre apodrece-o
o dia espera por ele,
outra vez.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Pessoal intransferível


Martin Kippenberger

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. sabendo: perigoso, divino, maravilhoso. Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena, etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, "herdeiro" da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.
E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.

Torquato Neto, in Os últimos dias de Paupéria
Editora Eldorado, 1974

sábado, fevereiro 24, 2007

Pedro e o Lobo na Casa da Música


Pedro e o Lobo
- Orquestra Nacional do Porto
Com a projecção do filme de Suzie Templeton
24 de Fevereiro, 21h - Casa da Música




Por ocasião da abertura do festival de cinema Fantasporto, a Casa da Música propõe um programa em torno da banda sonora e da música para a grande tela. De salientar a estreia ibérica do filme de animação "Pedro e o Lobo" de 2006, da realizadora Suzie Templeton galardoada pela BAFTA (British Academy of Film and Television Arts). Com a etiqueta da Breakthru Films, trata-se de uma interpretação intrigante e fantástica da conhecida narrativa infantil e que será acompanhada pela ONP na interpretação do clássico de Sergei Prokoviev. O filme teve, desde o início, a colaboração do maestro Mark Stephenson, que dirigiu a sua première no Royal Albert Hall em 2006.

(Programa realizado no âmbito do 27º Festival Internacional do Cinema do Porto - Fantasporto)

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

W.H. Auden - Centenário do Nascimento


W. H. Auden

Epitáfio para um Tirano

Perfeição, de um certo tipo, era aquilo perseguia
E a poesia que inventou era fácil de entender;
Conhecia a estupidez humana como a palma da mão
E interessava-se bastante por exércitos e frotas;
Quando ria, senadores respeitáveis morriam de tanto rir,
E quando chorava, criancinhas morriam nas ruas.

W. H. Auden, in "Another Time",
Tradução: a minha


Celebra-se hoje (21/02/2007) o centenário do nascimento de Auden. Tal como o próprio Auden em “Under Which Lyre”, os seus admiradores gostam de se ver como filhos de Hermes (e não de Apolo), não apreciando particularmente a realização de eventos especiais. Porém, a BBC irá dedicar-lhe algum tempo de antena.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Os Patinadores


Robert Ryman


É um dia de sol
e eu devia tomar balanço.
Ganho coragem, então.
Respirar fundo, escrever.
Não está ninguém a olhar-me.
Os patinadores dão um salto
no ar.

Richard Wagner, "Castanhas Quentes e outros poemas"
Quetzal Editores

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Trabalho

De volta às galés.
Escondi-me debaixo da bancada de trabalho, há migalhas e más traduções espalhadas pelo chão. Ainda não deram pela minha falta, o que é bom sinal. Faço tricot com alguns caracteres enquanto espero pelo toque da sirene. Encontrei esta inscrição no tampo da bancada:

Por vezes o gelo é vermelho e um fruto
sem casca parece-se com a lua suspensa.
Perdoa-me por não me explicar melhor.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

dores de costas

as dores de costas voltaram com as chuvas. não são agudas, mas incomodam-me. atacam-me como se fossem ovelhas a ruminarem-me a coluna e o dorso. o meu sangue de inverno é mais diluído, penso pouco, faço ainda menos. deito-me cedo e sonho com cantos húmidos e bafientos de hospitais. as camas de hospital fascinam-me, parecem altares brancos. acordo cedo, atordoado com as palmas dos espectadores dos meus sonhos. fazem um semi-círculo à volta da minha cama nas madrugadas de trovoada e parecem gostar daquilo que vêem.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Na Colina do Instante


Isidre Nonell Monturiol

Há um cheiro de absinto quando os capricórnios
da casca apodrecida dos carvalhos velhos
iniciam seu voo pelo mês de junho
Colhemos avelãs ao longo do jardim
onde as tílias ao vento espalham o aroma
A frescura da fruta vence o sol rasante
Somos quem fomos caminhamos tão de leve
temos tamanha dignidade de crianças
que nem a morte aqui de nós se lembraria
nem mesmo a monstruosa flor de outros destinos
nem qualquer outra das repúblicas do ódio
encresparia o calmo mar do fim da tarde
É à celebração sagrada do acaso
à festa da essência mineral do mundo
que o sol procede no segredo deste templo
A tarde é tudo e tudo são caminhos
Somos eleitos cúmplices da hora
Aqui não chega o desatino do verão
esqueço a aversão dos meus antepassados
e levanto-me sobre a derradeira luz
Por instantes sou eu ninguém morreu aqui
ó minha vida esse processo que perdi


Ruy Belo, Todos os Poemas
Assírio & Alvim

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Novena


Alexei von Jawlensky

Voltaria a vender a minha alma se pudesse. Sou um homem de fracos recursos, apurei a ladainha de me lamentar por tudo e por nada. Conto os meus medos e fraquezas durante as minhas intermináveis novenas em nome de Simone Weil. Vendo-os a quem oferecer o melhor preço. Sem garantias, é pegar ou largar.

domingo, fevereiro 04, 2007

Buganvília

- Pensa numa palavra, rápido!
- ...D'accord, ça y est!
- A palavra é clausura.
- Non.
- De certeza?
- Non, desolée.
- Pensa noutra.
- ...
- A palavra é agora buganvília.
- Très bien, c'est ça.