quarta-feira, maio 31, 2006

Vênus


Não tenho braços tal como a Vênus de Milo

Viro-me com alguma dificuldade e indolência
E não consigo ver as outras estátuas atrás de mim
Meus lábios de pedra, selados por castigo

Quero gritar como todas as mulheres
mas deus e a cidade não deixam.

Entre as minhas pernas
Tecidos rugosos cobrem
Desejo e frustação

O mais forte vencerá no fim.

Poeta/hamster

Os poetas são como aqueles hamsters naquelas gaiolas com cilindros giratórios: se param, morrem.
As mães hamster comem os seus filhos quando estão feridos ou doentes e sabem que não vão sobreviver. Também ocorre em situações de stress, insegurança, em ambientes não adequados para construir o ninho, etc. Não o fazem por ódio, mas por precaução e instinto.
Os hamsters e os poetas têm um antepassado comum. Há relatos de poetas que tentam a concepção, mas não conseguem dar à luz aquilo que mais desejam.
No entanto, não podem simplesmente parar e, assim, sofrem anos a fio presos nas suas gaiolas.

quinta-feira, maio 25, 2006

A/C da minha mana

Fui ao jardim da Celeste,
giroflé, giroflá,
fui ao jardim da Celeste,
giroflé, flé, flá

O que foste lá fazer?
giroflé, giroflá,
O que foste lá fazer?
giroflé, flé, flá.
Fui lá buscar uma rosa,
giroflé, giroflá,

Fui lá buscar uma rosa,
giroflé, flé, flá
Para quem é essa rosa,
giroflé, giroflá,

Para quem é essa rosa,
giroflé, flé, flá.
É para a menina Joana,
giroflé, giroflá,
É para a menina Joana,
giroflé, flé, flá

terça-feira, maio 23, 2006

Teu ombro estreito

Gaugin

Teu ombro estreito - para o chicote enrubescer,
Chicote enrubescer - o ar gelado queimar.

Tua mão infantil - para os ferros erguer,
Ferros erguer, e mais - cordames entrançar.

Teu frágil pé - nu pelos vidros esmilhados,
Pelos vidros, e mais - a areia ensanguentar.

E eu sou, vela negra, para arder por ti,
Por ti arder, e mais - a prece não ousar.


Ossip Mandelstam, in Guarda Minha Fala Para Sempre
Assírio & Alvim

sexta-feira, maio 19, 2006

le chat noir


Acordei hoje outra vez enroscado no chão. A minha a língua está cada vez mais rugosa e já não tenho sobrancelhas.
O terrível castigo abateu-se finalmente sobre mim. Já não consigo esconder a cauda que cresce quase dois centímetros todas as noites. Liguei para Deus que me reencaminhou para Kafka que me aconselhou vinho tinto e a cortar no leite. "Versuch stark!" e desligou.

domingo, maio 14, 2006

Amor como Depravação do Nervo Óptico

Entendem cordatos fisiologistas que o amor, em certos casos, é uma depravação do nervo óptico. A imagem objectiva, que fere o órgão visual no estado patológico, adquire atributos fictícios. A alma recebe a impressão quimérica tal como sensório lha transmite, e com ela se identifica a ponto de revesti-la de qualidades e excelências que a mais esmerada natureza denega às suas criaturas dilectas. Os certos casos em que acima se modifica a generalidade da definição vêm a ser aqueles em que o bom senso não pode atinar com o porquê dalgumas simpatias esquisitas, extravagantes e estúpidas que nos enchem de espanto, quando nos não fazem estoirar de inveja. E tanto mais se prova a referida depravação do nervo que preside às funções da vista quanto a alma da pessoa enferma, vítima de sua ilusão, nos parece propensa ao belo, talhada para o sublime e opulentada de dons e méritos que o mais digno homem requestaria com orgulho.

Camilo Castelo Branco, in 'Coração, Cabeça e Estômago'

quinta-feira, maio 11, 2006

Egoísmo

Aqueles que me acusam de egoísmo e reclamam os meus sentimentos, estão a absorver-me e a tributar-me com o seu egoísmo disfarçado de preocupação. Se me conhecessem melhor, não insistiriam mais e, mais tarde, seriam inundados por uma torrente de emoções e ideias que os confunde.

No final, acabo sempre por partilhar o meu egoísmo com quase todos aqueles que estimo .

quinta-feira, maio 04, 2006

A Troca

Já há algum tempo que pondero trocar todas as minhas mulheres e os meus sapatos de pele por camelos e "puros sangues". Entrei em conversações com um emir e vários vizires e as coisas parecem estar bem encaminhadas. Vai ser bom para ambas as partes, creio.

Quero sentir outra vez o chão que piso e libertar-me da cor púrpura destas mulheres que me cega e entorpece.

Depois disto, só preciso de morrer para reclamarem a minha alma, mas para isso tinha de estar vivo.

Penso cada vez mais no lugar que Deus me reservou para mim e que me está prometido desde o dia em que nasci. Quero levar também a minha gata castrada comigo para poder sentir o seu pelo macio - decerto vou ficar nervoso sempre que Ele se aproximar de mim e me interpelar.