terça-feira, janeiro 24, 2017
sábado, janeiro 21, 2017
terça-feira, janeiro 17, 2017
Na casa da minha avó
Depois do colégio (que fica lá em cima, no pequeno planalto do Candal, onde as pessoas nos olham de cima para baixo), regressava à casa pela rua das Costeiras, sempre a correr e aos pinotes, os paralelos estão sempre soltos e a rua está cheia de buracos. Ia para casa dos meus avós esperar pela minha mãe que regressava do trabalho. Primeiro sentava-me no enorme degrau da entrada. E depois fechava a porta e estendia-me no corredor da entrada. Foi aqui que aprendi a esperar.
Bastava olhar para a minha avó que mo ensinava sem o saber. Ela estava sentada num velho mocho (um pequeno banco casmurro que não deixava ninguém sentar-se em cima dele excepto a dona, a minha avó; o velho mocho era traiçoeiro, estrebuchava como um touro e atirava as pessoas ao chão), encostava-se à porta que dividia o corredor e a cozinha e fechava os olhos como se estivesse a sentir o respirar da casa que tinha mais anos do que ela. Não acendia as luzes enquanto não estivesse completamente escuro lá fora. O dia escurecia e só conseguia ver uma sombra à entrada da cozinha. O tempo então abrandava.
Enquanto esperava, esticava-me no soalho carunchoso do corredor da entrada e passava os dedos pelas tábuas carcomidas, gosto de sentir os nervos da madeira velha. O cheiro a humidade tapava-me como um cobertor e eu fechava então os olhos. Na minha cabeça, as fendas do soalho eram desfiladeiros e os buracos eram crateras. Havia ainda pequenos montinhos de um pó amarelo muito fino que nasciam de um dia para o outro sobre as tábuas. A minha avó dizia-me para não mexer nesses montinhos que era remédio para as moscas. Eram as minhas pirâmides do Egipto em miniatura. Ainda deitado, abria os olhos até me doerem, rebolava-os sem piscar, tentava furar aquela penumbra e via o vulto de um gigante em repouso, a minha avó. Quando estava mesmo escuro, nunca sabia se ela tinha os olhos abertos ou fechados, e isso causa-me impressão, ela podia estar a vigiar-me sem eu o saber, envolvia-me o corpo com o seu olhar demorado e triste e apertava-mo como se fosse uma cobra pitão, tinha de desviar o olhar para voltar a respirar. Conseguia ouvir o seu respirar pesado e cansado que me fazia lembrar sempre um vento forte e teimoso a ser cortado pelos cabos da luz e que era interrompido por terríveis ataques de tosse cheios de expectoração. Às vezes fazia suspiros roucos, "atacados", mas eu não tinha coragem para me levantar e reconfortá-la, não sei porquê, deixava-me estar ali deitado, à espera.
Conseguia distinguir os seus dedos ossudos virados para cima como se fossem duas tarântulas de patas para o ar, ouvi-a a tentar puxar as lágrimas para cima, arrependida por aquele momento de fraqueza. Depois, eu virava a cabeça e apreciava pela milésima vez os painéis na parede do corredor que tapavam as rachadelas e a humidade. Eram quadros antigos, de pessoas com roupas estranhas, as mulheres usavam saias de balão e os homens tinham meias brancas até aos joelhos. Tinham todos cabelos brancos, dançavam alegres numa clareira entre ruínas e colunas partidas, com anjinhos com setinhas, flechas e liras, e cães de caça aos pulos. Os painéis eram quadros em cartão, sem moldura, tinham sido oferecidos por um vizinho que é meio-anão e que trabalha numa gráfica. Gosta de conversar com a minha avó à soleira da porta. Fazia sempre uma cara feia quando eu surgia atrás dela, devia ter ciúmes de mim. Andava sempre com uma maleta de pele preta com muitos papéis dentro e parecia que estava sempre com pressa. O meu painel favorito era o das mulheres nuas em que uma delas, para mim a mais bonita, a que estava no meio do quadro, agarrava um grande cisne que lhe tapava o sexo. O cisne e as mulheres eram tão brancos que eram uma espécie de luz envergonhada naquele corredor escuro.
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