segunda-feira, janeiro 30, 2006

A pequena ratazana

A pequena ratazana cheirou o ar ao redor, engoliu a seco e arriscou cantar para o quarto minguante, o seu primeiro e único amor.

A cantilena era mais ou menos assim:

Le frisson
d'être bien
pour chanter
à cause de rien.

Le frisson
d'être curieux
c'est vraiement
marveilleux.

Le frisson
de n'être pas Mallarmé
sans aucune
responsabilité.

Le frisson
d'arriver
au fin
de cet hiver
.

Le frisson.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

A mão ao assinar este papel

A mão ao assinar este papel arrasou uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e reduziram a metade de um país;
estes cinco reis levaram a morte a um rei.

A mão soberana chega até um ombro descaído
e as articulações dos dedos ficaram imobilizadas pelo gesso;
uma pena de ganso serviu para pôr fim à morte
que pôs fim às palavras.

A mão ao assinar o tratado fez nascer a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas vieram;
maior se torna a mão que estende o seu domínio
sobre o homem por ter escrito um nome.

Os cinco reis contam os mortos mas não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como outras o céu;
mas nenhuma delas tem lágrimas para derramar.

Dylan Thomas, in "A Mão Ao Assinar Este Papel"
tradução de Fernando Guimarães
Assírio & Alvim

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Reis do Sonho




Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis do Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis do Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me restaria de possível ? (...) Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de o ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não o deixa sentir.

Fernando Pessoa, in "Livro do Desassossego"

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Campanha Eleitoral

Durante a tarde de ontem, apoiantes dos candidatos Dr. Speedy Gonzalez e Eng.º Mickey Mouse trocaram insultos depois das respectivas máquinas partidárias terem agendado ratices e outros beijinhos no mercado do Bolhão, no Porto. A imagem de ambos ficou ainda mais fragilizada, depois do espectáculo pouco abonatório que se verificou nesse local obrigatório e emblemático da cidade invicta. Os ânimos exaltados dos apoiantes pouco favoreceram o já atribulado ambiente da campanha, acusando-se mutuamente do desvio de "códeas que pertencem ao povo", chegando mesmo a insultarem-se com termos indecorosos, como "lambe-camemberts" ou "caga-flamengos".

segunda-feira, janeiro 09, 2006

Cada vez mais...

Cada vez mais, dou-me conta de que sempre levei uma vida contemplativa. Sou uma espécie de Brâmane ao contrário, meditando em si mesmo no meio da barafunda, que, com toda a sua força, se disciplina e desdenha da existência. Ou o pugilista com a sua sombra, que furiosamente, calmamente, socando no vazio, vigia a sua forma. Que virtuosismo, que ciência, que equílibrio, a facilidade com que acelera! Mais tarde, temos de aprender a aceitar o castigo com igual imperturbabilidade. Pela minha parte, sei como aceitar o castigo, com que serenidade produzo frutos e com que serenidade me destruo: em suma, actuo no mundo, não tanto para meu prazer, mas para dar prazer aos outros (são os reflexos dos outros que dão prazer, não os meus). Só uma alma cheia de desespero pode atingir a serenidade, e, para nos sentirmos desesperados, temos de ter amado muito e de ainda amar o mundo.

Blaise Cendrars, Une Nuit dans la Forêt

domingo, janeiro 08, 2006

A. não tão A.

7 dias, 4 horas, 32 minutos e 30 segundos sem saber o que é o cheiro do álcool.

sexta-feira, janeiro 06, 2006

Losa, Ilse Lieblich


Sim, lembro-me, claro que me lembro: ainda mal tinha saído da toca e ela deixava-me ficar migalhas de letras e de sonhos em cima da pedra cinza. Desejava avidamente explorar o mundo ao meu redor, quando, pouco a pouco, comecei a reparar no meu verdadeiro reflexo nas águas tumultuosas e a suster a respiração sempre que a brisa me roçava o pêlo...

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Fada dos dentes



Levei quatro estalos na boca da fada dos dentes sem saber porquê. Ela falava com sotaque carioca. Enfiou-me em seguida dedais dourados nos meus doze dedos, não fosse eu mexer onde não devia. Babei-me e voltei a babar-me e só pensava no tubo de sucção da saliva e o que aconteceria se o metesse no nariz.

Parti eu o meu porquinho cor de rosa para isto.