segunda-feira, dezembro 22, 2025

Código Morsa

Tendo como mote um dos poemas do polaco Zbigniew Herbert, desejava também eu compreender a fundo:

- a Consciência divina
- a natureza do Medo
- as horas vazias e não produtivas do Rolando Toro
- o que Catarina de Bragança fazia para seduzir Carlos II
- a minha cabeça em dias pares
- a técnica de P. P. Rubens
- a escrita de B. Hrabal
- o Amor Incondicional
- a força e a paciência dos mestres construtores de catedrais
- o que é Real e o que não é Real
- identificar todas as árvores do mundo pelas suas folhas
- a patafisica do Alfred Jarry
- como limpar o meu inconsciente*
- mais cenas que não me lembro agora (...)


*Este meu icebergue inconsciente é grande e pode assumir manchas muito cinzentas em dias pares (em dias ímpares, vivo numa espécie de clímax existencial, pareço um beato de olhos verdes que seduz as meninas mais bonitas num raio de 10 km). No dia como o de hoje, o passado vem ao de cima e morsas pesadas e lentas banham-se ao sol na parte exposta desse meu icebergue enquanto digerem o peixe que devoraram. Já viram bem o aspecto de uma morsa? São gordas & feias, lamento. Os machos podem ser muito agressivos quando estão com o cio (tais como os elefantes-marinhos que são ainda mais feios) e muitas vezes lutam entre si para conseguir um lugar ao sol. Literalmente. 
Mas são necessárias estas morsas, obrigam-me a olhar para elas, trazem à tona ilusões e medos para serem expostos ao sol frio de inverno. 

Em vez de tentar decifrar o que quero dizer com este texto patafísico, ouçam o tema incrível e absurdo dos Beatles "I am the Walrus" (Eu sou a morsa). 

Com a variante que, ao contrário de Lenon, não precisei de LSD para escrever este texto. Foi uma morsa que me sussurrou ao ouvido.


sexta-feira, dezembro 19, 2025

Sombras

 (...) Uma estrada sinuosa que se faz numa noite de bruma onde pontualmente aparecem candeeiros para iluminar o caminho. Olho lá para fora, através do para-brisas, e vejo sombras a mexerem-se que parecem - parecem - merecerem a minha atenção. Estas sombras são familiares. São chatas, reincidentes. Fazem de tudo para atraírem a minha atenção. O meu cérebro funciona assim. Desço o vidro e inspiro varias vezes o ar frio da noite e sinto uma espécie de "estalar" existencial até ao osso. 

"Outra vez" penso eu para com os meus botões de madrepérola.

Acelero mais um pouco. O Volvo responde-me à altura.

Admiro-me tanto por ser um mamífero raro. 

quarta-feira, dezembro 17, 2025

Harúspices e cenas


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1. Na Roma Antiga, um arúspice (ou harúspice) era um adivinho que inspecionava as entranhas de um animal sacrificado para prever o futuro. Ou seja, em vez de usarem cartas ou búzios, estes sacerdotes utilizavam as vísceras ou os fígados de uma ovelha ou de um boi como forma de adivinhação.

Não posso deixar de pensar - acabei de ganhar o prémio de understatement of the year com esta frase - o quão bizarro seria se esta arte divinatória chegasse até aos nossos dias (no mundo dito ocidental isto é) e se as pessoas pedissem ao homem do talho/arúspice para lhes lerem o futuro através da consulta precisa de um fígado de uma vitela ou de um frango do aviário. Seria uma espécie de 2 em 1: primeira faziam a consulta e depois levavam as miudezas para consumo doméstico. Saber a vontade dos Deuses através de um pedaço de carne e depois consumir essa mesma carne como se fosse um meio para se apropriar e integrar esse futuro dentro de si.

 

2.  Quando era pequeno, ia quase sempre aos sábados de manhã com a minha avó Ermelinda ao talho do Mercado da Beira-Rio (Gaia). O homem do talho (não era arúspice, mas era um homem sábio) chamava-se Senhor Aguiar. O talho tinha uma enorme câmara frigorífica branca, bastante antiga, onde era guardada a maior parte da carne. Já era bastante imaginativo nessa altura e enquanto a minha avó fazia os pedidos e conversava com o senhor Aguiar sobre tempos idos, eu imaginava que a qualquer momento um urso polar ou pinguins iriam sair daquela câmara frigorífica entre a espessa cortina de vapor frio. Seria muito incrível se tal tivesse acontecido. Também me recordo muito bem do cepo que o senhor Aguiar utilizava para cortar a carne e que repetia várias vezes que "já não se fazem cepos assim".

 

 

 

 

 

 

domingo, dezembro 14, 2025

Argonautas








Acabei de ler algumas passagens de um livro referência da antropologia, "Argonautas do Pacífico Ocidental" do Malinowski. É um tratado ao poder de observação científica sobre a vida de um povo das ilhas Trobriand, uma imersão intensa, uma desconstrução dos hábitos e rituais diários do homem chamado (pelo europeu) de "primitivo". 

Ao mesmo tempo, a minha mente levou-me para outro livro (ficcional, no entanto), "Viagem à Volta do meu Quarto" de um senhor chamado Xavier de Maistre. 

Basicamente, trata-se de uma sátira escrita no estilo da narrativa de viagens, e é um relato autobiográfico de um jovem oficial que, detido no quarto durante seis semanas, observa a mobília, os quadros e as decorações como se fossem paisagens de uma terra longínqua. Ou seja, Maistre torna-se um "mestre" a descrever objectos comuns como se tratasse de paragens exóticas, quase inatingíveis - é um diário de uma viagem da Imaginação. Uma sala, um quarto, uma divisão por mais pequena que seja, pode ser o ponto de partida para devaneios, reminiscências, exercícios de criatividade descritiva. No fundo, é uma viagem de auto-descoberta a partir de uma poltrona, de uma escrivaninha, etc. 

Maistre torna-se num Argonauta mental sem sair do seu quarto e tanto ele como Malinoski representam - um com espírito indagador e científico, outro com a imaginação como aliada - o que de melhor há na nossa capacidade de realização mental e criativa. 

Se quiserem, Malinowski e Maistre manifestaram, por vias diferentes, a beleza e a riqueza em "ser humano". 



segunda-feira, dezembro 08, 2025

A Missão

 

A condição que me impuseram quando aceitei esta missão foi - aliás, não foi apenas uma mas duas condições - saber lidar e saber viver.

Descreveram-me muito bem o ambiente ao qual iria estar sujeito: a família de acolhimento (pais, etc.), os amigos, os conhecidos, os desafios, as valências, os amores, os desamores. Tudo isto eu tive conhecimento antes de "vestir o fato", digamos assim. Não era de todo aquilo que se possa chamara "uma missão fácil." Apenas aqueles que estão bem preparados e bem equipados podem aceitar esta Missão. 

A partir do momento em que eu pronunciei "Sim, eu aceito", os meus responsáveis trataram de apagar tudo aquilo que eu era, tudo aquilo que tinha vivido e experienciado até então. Esta seria a cláusula de ouro, a contrapartida. Seria uma nova Vida, uma nova Existência, com tudo aquilo de bom e de mau. Todas as minhas vidas anteriores seriam apagadas da minha memória. Poderia, eventualmente, vislumbrar ou sentir pedaços, pequenas insinuações de outras Vidas, mas seria muito ao de leve. Teria mestres e mentores ao meu dispor com os quais iria aprender a comunicar sempre que precisasse de "auxílio superior". Acumularia conhecimento e experiência para enfrentar as fases mais conturbadas da missão. Não é uma missão fácil. Seria bombardeado com emoções, sentimentos, crises e ganhos, mas poderia sempre de recorrer à minha Consciência e aos Mestres para enfrentar este miríade de vivências que - ao que parece - iria durar anos. 

So far, so good? 

 

quinta-feira, dezembro 04, 2025

Batucada na lavandaria

Sou envolvido pelo cheiro intenso a amaciador que vem de dentro de uma daquelas lavandarias de rua. É um aroma intenso, quase perfurante. Parece que todas as ruas da cidade têm agora uma. É claro que me remete sempre a videoclipes e filmes americanos. Os clientes são quase sempre jovens ou emigrantes. 

Deti-me um pouco na entrada, fingindo que estava a consultar o telemóvel e escutei a conversa animada de dois brasileiros. Com o seu sotaque suavizaram o som ritmado das máquinas de lavar e quase que dava para dançar quando falavam entre si sobre algo que não me pareceu muito interessante. 

Mas nasceu ali um tema bem ritmado e orelhudo ("pegada" como eles dizem) naquela lavandaria de rua. A melodia açucarada do diálogo combinada com batida sincopada das máquinas europeias.

"Nota deiz, veio".

terça-feira, dezembro 02, 2025

Imaginação

 




Sinto que a Imaginação é uma porta, um canal, um meio para atingir a felicidade, para a manifestação desejada profundamente pelo coração. Quando temos níveis elevados de Imaginação (Criatividade, se quiserem) que não são devidamente canalizados, tal pode dar origem a uma certa aridez de existência, ou até mesmo a dissociações. Infelizmente, sei do que falo.

Por outras palavras: alguns de nós nasceram com um dom, com uma apetência inata para fazer algo, para criar algo. Nada de novo aqui.

Mas se não "coisificarmos" esse dom, as consequências podem ser, digamos, nefastas para o sujeito. Estou a ser meigo com as palavras. Eu acredito piamente nisto. Uma boa parte de nós humanos foi concebida para gerar algo. 

Há sempre duas artistas - mulheres, neste caso - que me vêm sempre à cabeça (coração?) quando falo de Imaginação ou Criatividade. 

Gloria O'Keeffe e Leonora Carrington.  

Bastante diferentes no estilo, ambas são Criadoras puras, mágicas, divinas, que converteram o Nada em Arte. Identifico-me bastante com estas mulheres-feiticeiras e com tudo aquilo que geraram com as suas mãos, com o seu coração, com a vida que lhes foi proporcionada. 

Segue um excerto traduzido de que como Leonora acredita ter sido concebida:

"Num dia melancólico, a minha mãe, inchada por trufas de chocolate, puré de ostras e faisão frio, sentindo-se gorda, apática e indesejável, deitou-se em cima de uma máquina. A máquina era uma engenhoca maravilhosa, projectada para extrair centenas de litros de sémen de animais — porcos, galos, garanhões, ouriços, morcegos, patos — e, pode-se imaginar, levou a sua utilizadora ao orgasmo mais espectacular, virando de cabeça para baixo todo o seu ser triste e doente. Dessa comunhão entre humanos, animais e máquinas, eu fui concebida. Quando nasci, em 6 de abril de 1917, a Inglaterra tremeu."

É isto. 

Quando forem de manhã para o trabalho, para aquela reunião de trabalho chata, ou aturar um chefe ou um cliente execrável (que é um desafio constante à nossa compaixão e humanidade), pensem nisto.

É triste nem sequer tentar*. 
 

*Este meu recado vai directamente para o meu Self também, como é óbvio.