sexta-feira, setembro 12, 2025

Lua


 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

Hoje, sexta-feira, foi dia de transmutação, de catarse, de inconsciente a reinar. 

O dia de "Friday" (Frīgedæg) era dedicado à deusa Friga, a equivalente germânica da romana Vénus. Hoje, porém, não senti muito o Amor, confesso. Senti sim as violentas Paixões que assolam tudo e todos. Emoções fortes, medos, dúvidas, o Ego a ser atropelado e a contorcer.

Acordei apreensivo e algo pesaroso. À medida que a manhã se desenrola, parece que a minha cabeça é uma ruidosa fábrica metalúrgica com bigornas, ferros incandescentes, com mil lascas, faúlhas e faíscas. Principalmente em dias de descanso, de ócio. "Mente desocupada (....)".

Lembrei-me agora do ambiente de trabalho do meu pai: industrial, duro, metálico, ferrugento. Era um operário incansável, adorava o que fazia, apesar de tudo. Este "tudo" fica para outra história.

Deixei o Sam na escola, ele estava feliz, os olhos enormes a brilhar. Despedi dele com um abraço, beijei o seu cabelo sedoso, desgrenhado. Tive por momentos algo parecido com um sentimento de inveja em relação ao meu filho; não me lembro da última vez que me senti como um puto de 8 anos: livre, solto, quase inconscientemente feliz.

Talvez esteja aqui a cair no exagero: foi há 3 meses, mais ou menos, sentia-me empoderado, firme, com momentos de despreocupação e leveza. Nunca pensei que houvesse um 2º round; o primeiro foi há quase dez anos e foi. Foi.

Talvez houvesse aqui uma fina camada de melancolia "mas nada de mais" - tem uma certa piada isto que acabei de escrever, as coisas que falamos ou escrevemos para relativizar a coisas desconfortáveis. Eu sei.

A caminhada higiénica pelo pinhal e pela praia foi muito, muito higiénica: de tal forma que parecia que tinha sido regado por uma tonelada de lixívia. Passo a explicar: a cada passo que dava, a mente oferecia-me coisas para lidar, uma sucessão de pensamentos, de triggers vindos do éter, como se houvesse um congestionamento mental e emocional. Doloroso, no mínimo. Deti-me por momentos a olhar o mar impávido e sereno, um horizonte imenso de azul e esperança.

Antes deste vale de sombras que estou a atravessar (há momentos de claridade, o sol brilha aqui e ali naturalmente) com velhos fantasmas a aparecerem a cada curva, a vida fluía, em aparente harmonia. Este tem sido o verão da minha vida, porque isto também é Vida, dizem. Assim quero acreditar.

Mas hoje foi assim, o Subconsciente a vir à tona, a beijar violentamente o Consciente, a vir à "Luz" - com tudo aquilo que acarreta. E a nível físico, uma dor na base da cabeça, na nuca, como se fosse uma batata quente a latejar.

Carta tarot do dia: a LUA. Claro. As comportas do subconsciente a abrirem-se: com as suas ilusões, fascinações, incertezas. Uma aparente fuga à realidade. Sim, FUGA, INCERTEZA também poderiam ser as palavras do dia. Mas sinto que não pode haver aqui evasão, não tenho como não lidar com isto tudo. Pode ser avassalador quando sinto a ansiedade a escalar em mim. 

Fui muito geográfico, muito topográfico nesta descrição, não é verdade, caro(a) e paciente leitor(a)?

O velho Rei-Medo sussurra-me ao ouvido: com que então queres cuidar dos outros, não é? Queres "estar" para os outros, não é assim? Então pega lá, e qual tal cuidares de ti antes? E fustiga-me com estas dúvidas que dilaceram a alma. O Rei-Medo, às vezes, é uma hera grande e velha que estende os seus tentáculos verdes pela minha Casa-Cabeça. Tenho fundações seguras, quase posso afirmar isso; por mais que ele tente me cobrir, não consegue destruir estas paredes com a cal queimada pelo sol. 

E "apesar de tudo, amanhã é sempre outro dia", como diria Scarlett O'Hara.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   

 

 

quarta-feira, setembro 10, 2025

A chave

Onde está a chave?

Onde está aquele folheto com as soluções todas?

Onde está o mantra ou a solução mágica para dissipar esta cortina de fumo que em dias como o de hoje se tornou espessa como chumbo?

Onde está aquele menino que se escondeu tanto tempo mas que agora quer ser visto?

Onde está a portão para o Castelo Interior?

De onde vieram estes espelhos convexos, côncavos, distorcidos que se reflectem entre si?

De onde vêm estas rajadas de ventos que se erguem de manhã cedo até evoluírem para furacões avassaladores?

Porque estas viagens constantes ao Passado que já foi há muito e depois ao Futuro que ainda não sequer existe?

E porquê agora? 

(e porque não, claro)

 

E, no entanto, eu volto a perguntar:

Onde está a chave?

Por favor não digam que está dentro de mim, da minha alma, do meu ser.

Porque eu sei que ela está cá dentro, mas ainda não a encontrei.

Tal como aquela música. 

 

terça-feira, setembro 09, 2025

Coração

 


 Abrir o coração deveria ser algo mais fácil. Mas não é. Pelo menos para mim.  

Deveria haver um curso de cirurgia intensivo sobre como abrir o peito para curar o coração. Um curso acessível, ao alcance de todos. Com uma bolsinha/kit de bisturis e demais instrumentos cirúrgicos. Conheço muitas pessoas que sofrem muito e andam sempre com "o coração muito apertado, destroçado" ou então dizem algo como "às vezes parece que o meu coração vai-me sair pelo peito", etc. 

Por outro lado, são pessoas que "estão com a cabeça cheia de coisas". E a maior parte dessas coisas são inúteis. 

Eu incluo-me nesse grupo de pessoas. 

Deveríamos todos saber como dar livre-arbítrio ao coração. Os especialistas, os grandes cirurgiões, dizem que é um órgão muito sábio, muito generoso. Basta possuir as ferramentas adequadas para chegar "lá". Os mestres da medicina chinesa dizem que é um órgão "oco", um pouco "tonto" e é alimentado pelo fígado que é visto como o órgão da Ira, da Fúria. Curioso.

Enquanto escrevo estas palavras, o meu coração está a bater-me no peito como se fosse uma bateria furiosa de uma banda de punk rock. Será que é isto quando dizem "o teu coração está a falar. Escuta-o." O meu agora é o baterista dos Dead Kennedys.

Mas como, se escutamos com as orelhas/ouvidos? Que coisa lírica de se dizer. 

Escrevi "livre-arbítrio". Mas isso também não é uma coisa racional, da mente?

Isto é um pouco confuso. Ou então a minha mente está a tornar confuso. 

Gostaria que houvesse um canal, uma via directa, fluida, rápida entre a mente e o coração.

Os grandes especialistas, os ditos cirurgiões do coração, juram que é mais fácil do que  parece. 

"Basta deixar-se ir, deixar fluir", dizem. 

O que é que isto significa na verdade, alguém me pode dizer?

"Tens mesmo de comprar esse curso, esse kit.", diz-me a minha mente. 

"Não é preciso", contrapõe o meu coração que parece agora bem mais calmo. 

Curioso. 


segunda-feira, setembro 08, 2025

A cama-sonâmbula

Lembro-me de estar deitado na minha cama - creio que a minha irmã ainda não era nascida - e sentir os móveis a falarem. Sussurravam algo entre eles que não conseguia compreender. 

Depois da minha pequena oração desajeitada, sentia que os móveis e demais objectos do quarto conferenciavam entre si. Não saíam do sítio, não se moviam, excepto a cama. 

Esta recordação - ou sonho não sei bem - é o da minha cama estender-se, aumentar duas ou três vezes de tamanho (como se fosse um daqueles gavetões de arquivo intermináveis) ao ponto do fundo do quarto me parecer longe, muito longe. Uma espécie de cama sonâmbula que se mexia e se esticava durante a noite. Ficava com a sensação estranha de estar entre duas dimensões, entre dois planos de realidade (ainda que não fizesse ideia do que era uma "dimensão").

É um "para-sonho" muito estranho, eu sei. A minha mãe dizia-me que tive alguns episódios de sonambulismo e que, durante um período, agitava freneticamente a cabeça de um lado para o outro no travesseiro e só depois adormecia. Auto-regulação, dirão os especialistas. 

Mais parecia que estava a escutar o mais intenso ritmo africano de sempre, mas sem ter de usar aqueles auscultadores enormes e magníficos dos anos 70. 

E resultava bem, porque depois adormecia profundamente.

O piano


A imagem de um piano

Abandonado numa praia

A bruma é uma doce manta 

Sobre a praia deserta

A areia é lisa, sem rochas

O mar é um lago sereno

As vagas vão e vem 

Muito tímidas 

Parecem beijar

Os pés do piano


Ouço uma melodia triste, 

arrastada, bela.

A praia está deserta 

A música dança suave 

Com as vagas indolentes


Um vulto revela-se ao longe

Caminha lentamente 

Por entre a bruma 

Detém-se ao lado do piano


O vulto parece olhar

Na minha direção.

Mas eu 

não sei muito bem

Onde estou. 


E a doce e triste melodia

continua

E as vagas lentas 

vão e vem. 

sábado, setembro 06, 2025

O bosque encantado

 


 

 

 

 

 

 

Num bosque encantado, tudo pode acontecer. Já todos sabemos isto de antemão. 

Podem variar as personagens, as "magias", o enredo, mas, em boa verdade, neste tipo de história, partimos sempre desta premissa: "tudo pode acontecer". 

O urso, um dos personagens desta história, sabe disso muito bem. Sabendo que "tudo pode acontecer", ele contempla o bosque à espera que algo aconteça. E passa-lhe várias coisas pela cabeça enquanto espera por esse "algo". Algumas das coisas são muito intrigantes e absurdas; algumas são tão desconcertantes que nem ele próprio sabe como a sua mente de urso concebe tais coisas. 

"Acontece" muita coisa dentro da sua cabeça castanha mas, ao fim e ao cabo, nada acaba por acontecer naquele bosque encantado.

sexta-feira, setembro 05, 2025

O Homem Estranho

O que é aquilo que aquele homem estranho traz ao peito?

Um colar feito de contas coloridas ao jeito dos xamãs? Um pedaço de vulcão que a qualquer momento pode entrar em erupção? Uma coroa de espinhos à volta do coração?

Ou talvez seja um disco dourado com o Sol alegre e uma Lua minguante triste. Em baixo pode ler-se:

 "Perdão".

- Pode ser isso tudo, diz o homem estranho. E sorriu.

quarta-feira, setembro 03, 2025

A tartaruga-devoradora

A tartaruga-devoradora (turturem devoransregressa à mesma praia todos os anos para desovar durante o início do verão. É uma espécie de tartaruga invasora que causa desequilíbrio e algum transtorno ao habitat da pequena ilha. 

O nome da ilha é tão longo que não me dou ao trabalho de escrever. Impronunciável. A grande mãe tartaruga deposita centenas de ovinhos na areia e durante a noite as pequenas tartaruguinhas-devoradoras partem a casca e o seu instinto leva-as para o oceano através de um grande areal.

Não se deixem enganar pelo seu aspecto pequeno e frágil. É uma espécie predadora. Ao contrário das outras espécies, as crias não são presa fácil. Tem uma alta taxa de sobrevivência e como o próprio nome indica, devoram tudo o que encontram pelo caminho. O impacto tem sido tal que fragilizou bastante o ecossistema local.

Recentemente, porém, ocorreu um estranho fenómeno. Os meninos da ilha deixaram de ter medo destas tartarugas. As crianças locais ganharam coragem (algo que os seus pais não conseguiam fazer durante séculos) e com um simples gesto, encararam e enfrentaram as tartaruguinhas-devoradoras. 

Os pequenos répteis, de forma muito intrigante, voltaram para os seus ovos partidos e ai definharam até perecerem. Apenas algumas conseguiam chegar ao grande oceano com vida.  Mas já não tão ameaçadoras como antes, já não representam um "verdadeiro perigo" para o habitat local. 

Como se costuma dizer, "a coisa começou a compor-se" naquele pedaço da terra perdido no vasto oceano de cor turquesa. Demorou algum tempo, anos e anos, mas dir-se-ia que o equilíbrio foi reposto.

Os meninos da ilha são agora considerados os grandes heróis da pequena ilha de nome impronunciável.