domingo, outubro 30, 2016

quinta-feira, outubro 27, 2016

Max Ernst, "Long Live Love", 1923

segunda-feira, outubro 24, 2016

O homem sem passado


O que semear a perversidade segará males; e a vara da sua indignação falhará."

O homem decide levantar-se e sai para a rua às quatro e meia da madrugada. Não consegue dormir. O quarto está cheio de carneiros sem cabeça que ele contou e decapitou vezes de conta. Está de tronco nu, a chuva forte bate-lhe no peito. Arrasta os pés pelo passeio e acha-se no direito de se comportar como um doente mental. Sabe que não é superior aos outros, mas também não é nenhum zé-ninguém. Gosta apenas de testar os seus limites e é por isso que pegou num guarda-chuva antes de sair de casa, mas não o abre. Na sua mente frágil e cansada, o guarda-chuva não é um guarda-chuva, é um machado. Observa as duas árvores da sua rua; antes achava que as árvores eram um símbolo de quietude e paz, agora nem tanto. Passa um carro, o condutor olha para ele através das gotas grossas do pára-brisas e traça-lhe um diagnóstico amador naquele momento. O carro afasta-se, a luz dos faróis dilui-se na chuva que cai agora com mais intensidade. O homem sem passado atravessa a rua e começa a bater com o guarda-chuva numa das árvores. Bate, bate, bate com tanta força até partir o guarda-chuva, as varetas desfazem-se todas. O homem atira o que resta do guarda-chuva para o meio da rua. Cai sobre os joelhos como um pecador arrependido e começa a chorar como uma criança. Exausto, encosta-se no tronco molhado da ameixoeira.
O homem sem passado acorda às nove e dez da manhã, sente a cama quente. A mulher já está a vestir-se para ir trabalhar. Ela dá-lhe um beijo na testa antes de sair.
"Quem é esta mulher?"
E é sempre assim, todos os dias. Está uma linda manhã de Outono. Um cão preto ladra e os outros cães da vizinhança começam a ladrar também. Como é que o homem sem passado sabe que o cão que está a ladrar naquele momento é preto? É a única coisa que sabe naquele momento, que aquele cão é preto. "The black dog". Sente um leve aperto na garganta e diz a si mesmo que tudo vai correr bem.

quinta-feira, outubro 20, 2016

Nem é bom

"Nem é bom".
O meu porteiro diz-me sempre isto quando o Sporting perde ou quando alguém é assassinado, lamenta sempre com o mesmo tom de pesar. Ontem, mostrou-me uma notícia do C.M. de um indiano de Lisboa que tem uma loja e que para atrair ou manter clientes, gostava de engolir facas - um pretenso faquir, portanto. Mas, por engano, engoliu um garfo de plástico (daqueles usados em piqueniques) e teve de ser chamado o INEM. Estado clínico reservado.
"Nem é bom", lamentou o meu porteiro, abanando a cabeça. Pedi-lhe a folha da notícia e ela deu-ma sem hesitar. É um bom homem.

segunda-feira, outubro 17, 2016

Fogo

Escrevi a palavra "fogo" para a monódia na qual estou a trabalhar há cerca de oito meses. Ia no metro. O jovem que estava sentado à minha frente a ler (creio que era o "Siddhartha" do H. Hesse)
começou a arder numa espécie de combustão espontânea. Tentei riscar a palavra, em puro desespero, mas já era tarde de mais. Uma coisa horrorosa. Ninguém reparou no facto, apenas eu (ou então fizeram de conta). Mas, para meu grande espanto, o livro ficou inteiro, no chão. Não ardeu. Mais um sinal.

terça-feira, outubro 11, 2016

segunda-feira, outubro 10, 2016

O Caminho

Caminhámos de madrugada
por entre videiras e figueiras
Fizemos os caminhos das pedras
Peidámo-nos à sombra de tílias e castanheiros
Deixámo-nos seduzir por uma holandesa de
's-Hertogenbosch,
uma catequista ninfo da Azurara
e uma descompensada de Trancoso
Entrámos em capelas belíssimas
À noite, escutámos a consciência do
verdadeiro e violento ressonar
dos albergues
Ouvimos os ensinamentos
de um catedrático chato como a potassa
Cagámos generosamente junto a riachos de
águas cristalinas
Escutámos gaios, corvos e pegas rabudas
Vimos as mesmas nuvens descritas por Goethe
Passámos por aviários que fediam a milhas
Comemos tapas e bocadillos bons, maus e assim assim
Bebemos bidões de Estrella Galicia
Insultámos e louvámos Santiago,
a Virgem do Caminho e outros santos
Passámos ainda por um casarão
habitado por um casal de cavalos
que tinha um ar um pouco desolado
"Buenas, bo camiño"
Chegámos por fim à cidade sem pés nem joelhos
Não entrámos no nosso destino final:
Um casamento jet set patrocinado pela !Hola!
impediu a nossa entrada triunfal na Catedral
Apanhámos o autocarro para casa
a cheirar a bosta, com as mãos a abanar e
o coração cheio.

segunda-feira, outubro 03, 2016

Sono

Segundo as minhas últimas análises médicas, a minha cabeça é feita essencialmente de passiflora, valeriana e neurosesitas. O meu médico de família recomendou-me contemplar as estrelas antes de ir para a cama. Gostaria de o fazer num alpendre para dar um ar mais western, mas não tenho, tenho de me contentar com a varanda. Concentrei-me em Vega, a minha estrela favorita, que fica a pouco mais de 25,05 anos-luz (marcha rápida, vigorosa, com sticks de caminhada). Vega é uma palavra de origem árabe e que significa "águia a mergulhar" ou algo parecido. Arrasto-me até ao quarto. Sei onde fica o meu quarto porque tenho vieiras e setinhas de Santiago espalhadas no chão e na parede entre o quarto e sala. Não há que enganar. Um muro alto e grosso de pladur ergue-se entre mim e o Sono e saltamos os dois ao mesmo tempo para tentar ver a cabecita do outro, no meio da penumbra do quarto. Penso na risada recauchetada da Teresa Guilherme e tremo de pavor. Meu Deus, porquê? Vega já lá vai. Deveria ter previsto isto. Tento afundar-me no colchão, afundo-me, afundo-me com tanta força ao ponto de ficar exausto e bater no fundo; quando dou por mim estou finalmente a dormir. E é isto todos os dias. Diacho, diacho.