quinta-feira, julho 28, 2005

Tarde


R.B. Kitaj

Tarde

Esta é uma tarde completa:
centenas de cacos de solidão
Eu conto
Eu comparo
Eu formo
Eu junto
Estas são as minhas mãos nuas
numa mesa nua e triste.
Tento manter este instante,
este fragmento de tempo, completamente dissecado.
Tenho os olhos arregalados.
Sinto o toque áspero e louco
da solidão.
Um sol branco, solitário e enlouquecido
está suspenso
no céu branco

Vasant Abaji Dahake
Trad. por Pedro Amaral

terça-feira, julho 26, 2005

Quartzo, Feldspato e Mica

O "Quartzo, Feldspato e Mica" encerrou a sua emissão há uma semana atrás.
Sinto-me na obrigação de afirmar aqui (com algum atraso, eu sei) que o "Micas" foi um dos pontos de partida que me levou a conceber este blog, "toca do lobo", o que queiram chamar. Foi um prazer ler os seus posts que foram autênticos balões de oxigénio para mim e lufadas de ar fresco na nossa blogosfera. Creio não falar apenas em meu nome.

Obrigado Rui.
Venham agora mais "dias felizes".

Whale watching

Descobri recentemente que os Portugueses não são grandes fãs nem de cetáceos nem de hortênsias. A julgar pelo tamanho das filas dos check-in para Las Palmas ou Tenerife no aeroporto de Lisboa, julgo que apreciam muito mais o convívio fraternal e pacífico das praias espanholas, bem como os famosos hóteis de cinco estrelas onde não faltam entertenimento a rodos e assistência "au pair".
Bem, mas é claro que a Inveja é uma coisa muito feia.

sexta-feira, julho 15, 2005

Imagem Recuperada


Schiele

Espetados os rosados mamilos, gotas de água
Deslizam nos teus peitos, pequenos
Na sombria racha do teu cu, que treme
Entre ondas clareadas pela luz das estrelas,
Num tíbio mar de fim de verão.
Agora, anos depois, essas mesmas gotas
Resvalam ainda pela pele suave do teu ventre,
O teu escondido umbigo,
O áspero e negro pêlo do teu sexo,
Frágeis e mínimas pegas de orvalho nos teus músculos.
Precária intimidade, face ao tempo acossado,
E de repente nos teus olhos, relâmpago na sombra,
A luz daquela noite, as tuas mães debatendo-se no ar,
Aquele galope branco da espuma chegando.

Juan Luís Panero, “Antes que chegue a Noite”
Versões de António Cabrita e Teresa Noronha
Fenda

O Meu Carácter


Almada Negreiros

Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. Não importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo.
Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por de mais inteligente.
Pelas minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam o alvor da minha vida, pela influência dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas tendências) - por tudo isto o meu carácter é do género interior, autocêntrico, mudo, não auto-suficiente mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do autodomínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito.

Fernando Pessoa, "Notas Autobiográficas e de Autognose"

quarta-feira, julho 13, 2005

O arauto

Sempre me fascinaram as pregas que se formam nas pontas dos dedos depois de um banho quente. As horas!14:45h. Enquanto me secava à pressa, ouvi aquilo que parecia ser um relinchar. Já estava acordado há mais de uma hora, por isso não podia estar a sonhar. O som parecia vir da minha banheira. Outra vez. Afastei o cortinado a medo e qual não foi o meu espanto ao ver um robusto garanhão a sorrir para mim, dentro da minha própria banheira.
Deixei cair o toalhão e fiquei petrificado a olhar para aquela criatura que não parava de mostrar a saudável dentadura. Possuía uma crina majestosa e tinha o pêlo castanho muito bem tratado.
Fechei o cortinado com alguma violência, apoiei-me sobre o lavatório e vi o meu olhar esgazeado no espelho baço, cheio de vapor.
Ainda não me tinha recomposto, quando ecoou uma trombeta por toda a casa. A porta da casa-de-banho abre-se atrás de mim e eis que irrompe a figura de um arauto vestido a preceito. Avançou, imperturbável, parou, subiu para cima da sanita e anuncia num tom solene e empolado que tem como missão arrancar a minha maçã de Adão e cortar os meus dedos para bem das gentes deste reino.
Vou chegar atrasado ao trabalho. Outra vez.

terça-feira, julho 12, 2005

Um Velho


Goya

No café no lugar de dentro na zoeira turva
senta-se um velho na mesa se curva;
com um jornal diante dele, sem companhia.

E no desdém da velhice miserável
pensa como usou tão pouco o tempo deleitável
em que força, e eloquência, e beleza possuía.

Sabe que envelheceu muito; sente-o, é visível.
E contudo o tempo em que era novo ao mesmo nível
do de ontem. Que espaço apressado, que espaço apressado.

E considera como burlava dele a Prudência;
e como nela tinha confiança sempre - que demência! -
a perjura que dizia: «Amanhã. O tempo é demorado».

Lembra-se de impulsos a que punha freio; e sem medida
a alegria que sacrificava. Cada história perdida
agora troça da sua desmiolada sageza.

. . . . Mas do muito que foi pensando e não esquece
o velho atordoou-se. E adormece
no café apoiado sobre a mesa.


Konstandinos Kavafis
POEMAS E PROSAS
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães
e Nikos Pratsinis
Relógio d´Água

sexta-feira, julho 08, 2005

Amor e favas contadas


Da Vinci

Não adianta muito adiar as coisas, sabes disso. As tuas roupas, os teus fatos italianos, todos os teus trastes sem serventia ainda estão lá em casa. É simplesmente infantil quereres prolongar aquilo que já anda moribundo há meses. Estamos a rogar por um tiro de misericórdia e ninguém tem tomates para o fazer. As tuas chamadas a meio da noite são demasiado más para serem verdade. Esqueceste que tenho de ganhar a vida e trabalhar no dia seguinte. Nunca me deste valor por aquilo que sou e por aquilo que consegui. Dizes que ganhas mais num mês do que todos os meus amigos juntos. Impinges a tua propaganda aos médicos e beija-lhes o cu, é o que é.
Que eu fique entrevada para o resto da minha vida: podes fazer uma rodinha no calendário, meu querido. Acabou-se.

Para a Margarida Rebelo Pinto, com amor...

quinta-feira, julho 07, 2005

O sonho do poema


Schiele

O sonho do poema

Por duas razões que resistem à especulação
O poema recolhe-se cedo
No corpo do poeta:
Ou o poeta se priva de sonhar
Ou o guerreiro
Decidiu descansar!
Apenas entre mãos sonhadoras o poema dorme na posição correcta!


Boujema El Aoufi
Trad. Pedro Amaral

terça-feira, julho 05, 2005

aprendi


David O'Connell

aprendi

aprendi (na igreja):
oferece também a outra face
a quem te bater na direita

aprendi (na instrução corpo-a-corpo):
um pontapé nos testículos do inimigo
é a forma mais segura de o derrubar

o que vale então?

Mateus 5. 38/39


Poemas à Margem, Kurt Marti
Tradução colectiva
Colecção «Dois Dedos de Leitura»
Apáginastantas