quinta-feira, junho 30, 2005

A raça dos escritores


George Grosz

A raça dos escritores tem um cheiro de pele nauseabundo e, para cozinhar, utiliza os métodos mais sórdidos. É uma raça nómada que pernoita sobre o próprio vómito, que é expulsa das cidades e perseguida nas aldeias, e por todo o lado se torna íntima do poder que lhe concede lugar nos bairros amarelos, como às prostitutas. Porque a literatura cumpre em toda a parte o mesmo desígnio: ajudar os chefes a manterem os soldados em obediência, e os juízes a justiçarem os condenados.
O escritor é um misto de papagaio e de padre. É papagaio no sentido mais elevado da palavra. Fala francês se o seu dono é francês, mas se for vendido para a Pérsia dirá em persa «o loiro é parvo» ou «o loiro quer açúcar». O papagaio não tem idade, não sabe distinguir o dia da noite. O dono, quando se aborrece, cobre-o com um lenço preto, o que constitui para a literatura uma imitação da noite.


"Guarda Minha Fala Para Sempre", Ossip Mandelstam
Trad. Nina Guerra/Filipe Guerra
Assírio & Alvim

quarta-feira, junho 29, 2005

Abat-jour


Basquiat

Vou comprar um abat-jour e adaptá-lo de alguma forma à minha cabeça para me ligar e desligar sempre que me apetecer. Será roxo, em pano e com berloques de renda. O meu campo de visão vai ficar limitado, mas acho que, por vezes, vejo mais do que aquilo que desejaria realmente ver. Na verdade, não sei bem para onde iria com o meu abat-jour, mas tenho a forte sensação de que arranjaria bastantes seguidores, homens vergados com albardas sobre as costas, moças sorridentes com varões de cortinados batendo-me ao de leve, pensionistas sem dentes, envoltos em toldos de cafés, e cães, muitos cães atrás de mim.

terça-feira, junho 28, 2005

Existem histórias que acabam antes de começar


Paula Rego

Emoção é um cão sarnento
Mordendo-me para uivar como noventa por cento das pessoas desta cidade
O cão vence o lobo dentro de mim

Muitas frases falharam-me ao jantar
Os restos do teu homem pairavam sobre nós apesar da pálida luz
Tive de beber o meu copo em silêncio
E olhar para ti profundamente, ainda que desconcentrado
Tive de parar de correr na difícil esquina
Que me faz sentir pequeno, espero agora um telefonema

Bom vinho
E um delicioso couscous marroquino
Estiveste muito perto naquela festa à noite
O coração aterrou como um convidado repugnante, gaguejei
Mas o teu caso foi realmente muito suave

Em vez de te atacar com um lobo na floresta
Lambi a tua mão como um cão que pede amor


Abdel ilah Salhi
Trad. Pedro Amaral

quinta-feira, junho 23, 2005

St. Paul e Isso Tudo


Matisse

St. Paul e Isso Tudo


Completamente embaraçado e sorrindo
entro
sento-me e
encaro o frigorífico
é Abril
não Maio
é Maio

pequenas coisas que têm de se assegurar de manhã
depois das grandes coisas da noite
queres que eu venha? quando
penso em todas as coisas em que tenho pensado sinto-me louco
apenas a "vida em Birmingham é o inferno"
apenas "sentirás a minha
falta mais isso é bom"
quando as lágrimas de uma geração inteira forem reunidas
não encherão mais que uma chávena de café

só porque se evaporam

não significa que a vida tenha calor

"este sonho vário de viver"
estou vivo contigo
cheio de gozos ansiosos e ansiedade gozosa
dureza e suavidade

ouvindo enquanto falas e falando enquanto lês
leio o que tu lês
tu não lês o que eu leio
o que está certo, eu é que tenho curiosidade
tu lês por certa razão misteriosa
eu leio apenas porque sou um escritor
o sol não se põe necessariamente, por vezes só desaparece
quando aqui não estás alguém entra e diz

«oh,

não há dançarino nessa cama»
Ó os verões Polacos! esses esboços!
esses dentes pretos e brancos!
nunca vens quando dizes que vens mas por outro lado é certo que vens

Frank O'Hara, "Vinte e cinco poemas à hora do almoço"
Trad. José Alberto Oliveira
Assírio & Alvim

quarta-feira, junho 22, 2005

Todo Cambia


Miró

Cambia el rumbo el caminante,
Aunque eso le cause daño
Y así como todo cambia,
Que yo cambie no es extraño

Cambia, todo cambia, cambia, todo cambia

Cambia el sol en su carrera,
Cuando la noche subsiste
Cambia la planta y se viste
De verde la primavera

Cambia el pelaje a la fiera
Cambia el cabello el anciano
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño

Pero no cambia mi amor, por más lejos que me encuentre
Y el recuerdo ni el dolor, de mi pueblo y de mi gente

Y lo que cambió ayer, tendrá que cambiar mañana
Y así cambio yo, en estas tierras lejanas

Cambia, todo cambia, cambia todo cambia...
Cambia todo cambia...

Julio Numhauser

terça-feira, junho 21, 2005

Cravo



Não sei quando começou nem quando acabou, mas creio que passei quase três horas naquele estado letárgico à espera de algo esclarecedor e brilhante no fim. Foi algo hipnótico, extra-sensorial, isso posso garantir-vos. Lembro-me apenas da melodia de um cravo que ia e vinha ao sabor de um vento caprichoso. Pela maneira como tocava, o autor seria alguém que queria amaciar a alma ou penitenciar os seus próprios pecados. Era o complemento musical ideal para o objecto da minha atenção naquela tarde inesperada.

segunda-feira, junho 20, 2005

Canção Popular


Der arme Poet, Karl Spitzweg

Canção Popular

Todo o verdadeiro poeta é um monstro.
Destrói pessoas e o seu discurso.
O seu canto eleva uma técnica que arrasa
a terra para que não sejamos devorados por vermes.
O bêbado vende o seu casaco.
O ladrão vende a sua mulher.
Apenas o poeta vende a sua alma para separá-la
do corpo que ama.

Tomaž Šalamun
Trad. por Pedro Amaral

Domingo de manhã


Sunrise with Sea Monsters, J. Turner

- Posso dizer agora quantas frinchas tem o estore do meu quarto, se não o fechar por completo: vinte e oito. Desvio o olhar para a parede da frente e consigo distinguir três pontos na parede, por entre as sombras que bailam no meu quarto de domingo de manhã. Tento uni-los tropegamente, formo um triângulo. Lembro-me então que Geometria era suportável, mas Álgebra passava-me ao lado. Repito este exercício vezes sem conta, não consigo arranjar motivos para me levantar. Não trabalho hoje, por isso não vou chegar atrasado. Ouço sem esforço a música do rádio-despertador dos vizinhos. Não posso garantir que estejam a faze-lo, sempre me distraíam, mas os chatos dos Pink Floyd não me deixam ouvi-los. Apesar de dormir de tronco nu, afasto o lençol para o lado, sinto calor.
Fecho os olhos e tento adormecer mais uma vez.

sexta-feira, junho 17, 2005

Notas de Um Velho Safado



"...Para aprender, não leia Karl Marx, merda seca demais. Por favor, aprendam o espírito. Marx é apenas tanques invadindo Praga. Não se deixe pegar dessa maneira por favor. Antes de tudo, leia Celine. O maior escritor em 2000 anos. Naturalmente, O ESTRANGEIRO de Camus tem que entrar. CRIME E CASTIGO. OS IRMÃOS. Todo o Kafka. Todos os trabalho do autor desconhecido John Fante. As histórias curtas de Turgenev. Evite Faulkner, Shakespeare, e especialmente George Bernard Shaw, a mais inflada fantasia que floresceu em todos os Tempos, uma verdadeira merda que expandiu-se com conexões políticas e literárias para muito além do que se possa imaginar. O único sujeito mais jovem que consigo pensar com a estrada pavimentada à sua frente e beijar-lhe a bunda sempre que necessário foi Hemimgway, mas a diferença entre Hemimgway e Shaw era que Hem escreveu coisas boas no começo e Shaw só conseguiu escrever asneiras durante toda sua vida.
Portanto, aqui estamos nós misturando Revolução com Literatura e ambos combinam. De alguma forma tudo combina, mas eu fiquei cansado e espero pelo amanhã.
Será que o Homem baterá à minha porta?
Quem se interessa?
Espero que isso vos faça vomitar vosso chá..."

BUKOWSKI, Charles.
Trecho de "Notas de Um Velho Safado"

quinta-feira, junho 16, 2005

"As mulheres"



É bom cheirar as mulheres. Cheirar as mães e as filhas. Cheirá-las quando descem do autocarro, quando estão à espera, quando não se pentearam ainda. Quando de mau humor recolhem os lençóis de repelão e sentem nelas a grande miséria do dia, quando mandam alguém por sabão ou cebolas ou tomam um copo. É bom cheirar de vez em quando a santa, oportunamente a puta, valentemente a própria mulher. Há que cheirar a casa quando se veste, cheirar as abelhas e o café quando já abalou. Cheirar o canto da porta e a serradura. As folhas de rascunho, o mecanismo do guarda-chuva, o anel esquecido, o jornal ainda morno. Há que cheirá-las quando se movem. Cheirá-las profundamente quando se retiram. Cheirar as saliências da pedra, cheirar a sopa e a noz quando se assustam. Há que cheirá-las sem ter medo dos seus bolsos, cheirar a sua respiração e o seu vazio, o seu mar e a sua pesca.É bom cheirar as mulheres e dizer: isto é pó, isto é cera, isto é pasto.

"Novíssimos poetas da Costa Rica" in Matérika

A Magia do Primeiro Post

Por favor, estejam à vontade.
Façam de conta que estão em vossa casa.
Ou, simplesmente, façam de conta.

Bem-vindos!